domingo, 30 de agosto de 2009


Do pós-humanismo à Humanidade


Há bem pouco tempo foram publicados dois livros de grande importância na análise da sociedade contemporânea. Embora os pontos de partida sejam diferentes, eles interagem na busca de soluções e convergem na identificação das causas de um mal-estar da Humanidade. São eles O mundo sem regras, de Amin Malouf , e a encíclica Caritas in veritate [Caridade na verdade], do papa Bento XVI .

Nessa tentativa de perceber o que de mais profundo está a emergir na actualidade, Malouf considera que estamos numa fase em que “tudo deve ser inventado de novo – as solidariedades, as legitimidades, as identidades, os valores, as referências” [p. 180]. Não poderíamos estar mais de acordo com esta afirmação. Pois, mais do que falarmos num reencontro ou redescoberta dos tempos perdidos, de reencontrar o sentido, a saída para a crise e as referências para os homens de hoje, teremos que inventar um novo modo de Humanidade, uma nova forma de conceber a presença do ser humano no mundo.


Assim, “fazer do dinheiro o critério de toda a respeitabilidade, a base de todo o poder, de toda a hierarquia, acaba por esfarrapar o tecido social” [O mundo sem regras, p. 182]. Por outras palavras, a busca desenfreada e egoísta do lucro por parte de homens sem sentido de comunidade e sem noções de partilha gerou o caos sócio-económico dos tempos actuais. Aliás, não foram estes senhores, das ditas sociedades do alto conhecimento, que levaram ao colapso uma grande parte das economias e dos sistemas financeiros mundiais? No mesmo sentido pensa Bento XVI, dizendo que “o objectivo exclusivo do lucro, quando mal produzido e sem ter como fim último o bem comum, arrisca-se a destruir a riqueza e a gerar a pobreza” [Caritas in veritate, n.º 21].


Mas, Malouf, ao afirmar que “a nossa escala de valores só pode basear-se hoje no primado da cultura e do ensino. E que o século XXI será salvo pela cultura ou então soçobrará” [p. 186], não estará a reduzir em demasia os valores a uma simplicidade bastante contrastante com a complexidade da realidade(s) e da antropologia humana? Perguntamos nós: que ensino ou cultura? A Ocidental ou a Oriental? Laica ou religiosa? Haverá uma cultura ou ensino de tal modo universal que consiga abarcar toda a realidade(s)? Ao reduzir a salvação do planeta à cultura e à educação não será já uma forma redutora de entender o mundo actual? Se todos tivessem acesso a uma educação plena e a uma cultura de excelência estaríamos por si só salvos? Isso bastaria para que o Homem tivesse encontrado o ponto máximo da sua perfeição?


Certamente que ninguém coloca em causa a importância do ensino e da cultura para o progresso da humanidade na sua dimensão material e espiritual. Mas isto é uma forma laica de conceber o mundo, pois coloca de lado a referência ao fundamento último da Humanidade, a sua dimensão religiosa, não no sentido estrito de uma confessionalidade declarada, mas de uma espiritualidade performativa, intrínseca a cada ser humano. A visão religiosa do mundo e todo o simbolismo que lhe subjaz permitem fazer frutificar uma determinada experiência individual, abrindo-a para o universal, para a humanidade toda. Para Mircea Eliade, os “símbolos despertam a experiência individual e transmutam-na em acto espiritual, em compreensão metafísica” [O profano e o sagrado, p. 218] .


O apelo à dimensão simbólica da vida parece surgir em força na pós-modernidade, após uma recusa humanamente fatal da modernidade, que procurou eliminar toda a simbologia religiosa – sinal de irracionalidade –, resumindo o humano à técnica. Pelo símbolo acedemos à mais alta espiritualidade e, por sinal, à mais alta racionalidade, na medida em que dualizamos os diversos modos de existir. É o símbolo que nos faz “abrir ao mundo” [Mircea Eliade], a sairmos de nós, para experimentarmos o mistério como presença do transcendente no mundo. É esta crise do simbólico em favor de uma alta racionalidade que temos de ultrapassar. Não no sentido de superação mas de integração destas duas dimensões performativas do pensamento e da acção.


Não é possível parar o desregramento do mundo e alcançar a justiça social se buscamos as soluções somente segundo a medida humana. Precisamos de dar o salto para um tempo pós-humanista de modo a percebermos que a vontade humana está para além de si mesma e que a última decisão não pertence a um só homem mas a todos aqueles que buscam a Verdade, a Justiça e o Amor. Porque “sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer compreender quem seja […] o homem não é capaz de gerir sozinho o próprio progresso, porque não pode por si mesmo fundar um verdadeiro humanismo” [Caritas in veritate, n.º 78].


Uma era pós-humanista é necessária para percebermos que um humanismo sem o Homem e sem Deus não é possível. Antes, seria insuportável! Uma era pós-humanista, isto é, a necessidade de passarmos pelo deserto dos humanismos, torna-se cada vez mais real, para entendermos a beleza de sermos humanos e de gerarmos uma nova Humanidade capaz de partilhar entre si as alegrias deste mundo.


Neste sentido, concordando com Malouf, diremos que “este século, ou será para o homem o século da regressão, ou será o século do sobressalto e de uma salutar metamorfose. Se necessitávamos de uma «situação de urgência» para nos sacudir, para mobilizar o que há de melhor em nós, aqui estamos” [274]. Talvez não baste mobilizar o que há de melhor, mas seja também necessário (re)ver o que há de pior em nós, de modo a evitar que o pseudo-melhor se transforme em catástrofe e em irresponsabilidade social.

João Paulo Costa

"Sacanas sem Lei"



"Sacanas Sem Lei"



Realizador: Quentin Tarantino

Actores: Brad Pitt, Diane Kruger, Daniel Bruhl, Mike Meyers,

Michael Fassbender, Mélanie Laurent, Eli Roth, Christoph Waltz

Género: Drama, Guerra

Classificação: M/16


A crítica do filme "Sacanas sem lei" foi retirada do Jornal Público, mais especificamente do Suplemento Ípsilon.



Sinopse


Quentin Tarantino junta-se a Brad Pitt, Diane Kruger, Daniel Bruhl, Christoph Waltz, Mike Meyers, Michael Fassbender e Mélanie Laurent num tributo a "Quel Maledetto Treno Blindato", um filme de guerra italiano, de 1978, realizado por Enzo Castellari e que saiu nos EUA com o título "The Inglorious Bastards".


Durante a II Grande Guerra assistem-se a corajosas lutas: do tenente Aldo Raine (Brad Pitt), conhecido como Aldo, o Apache, especialista nos escalpes e líder dos Sacanas, um grupo de soldados americanos escolhidos para espalhar o terror entre os nazis, eliminando-os com especial requinte; de Bridget von Hammersmark (Diane Kruger), uma famosa actriz alemã que na verdade colabora com a Resistência Francesa; e de Shosanna (Mélanie Laurent), uma rapariga judia sobrevivente ao massacre da sua família que acaba em Paris, a gerir um cinema durante a ocupação dos alemães.


Nessa sala de cinema, durante a grande estreia de "O Orgulho da Nação", um filme de propaganda nazi, em que o próprio Hitler e os principais líderes tinham previsto marcar presença, o grupo dos Sacanas e Shosanna cruzam-se com um objectivo comum: a destruição do III Reich.


Ao centrar o filme no poder das imagens e das palavras, Quentin Tarantino dá a "Sacanas sem Lei" uma dimensão que transcende em muito a questão da Segunda Guerra Mundial.

Faríamos mal em acreditar que "Sacanas sem Lei" é o simples filme de aventuras na Segunda Guerra Mundial que a publicidade (alguma, pelo menos) tem querido vender. Tarantino recolhe elementos de múltiplos filmes de aventuras, na Segunda Guerra Mundial e não só (em certos momentos, a memória do "western", como género e como "mundo", é extremamente importante), mas o que faz com eles está bem longe de ser simples ou, sequer, típico. Por outro lado, e isto também é uma razão, esta Segunda Guerra Mundial não é bem a que conhecemos. Ou é a que conhecemos mas com um "twist", o "twist" suficiente para a lançar numa espécie de universo alternativo.


Na cena crucial de "Sacanas sem Lei", quando as pilhas de rolos de película de nitrato pegam fogo ao estado-maior do Terceiro Reich, torna-se claro que Tarantino não reconstitui, reinventa, e que o seu filme é um exercício de história alternativa, de história ficcional.


Crítica Ípsilon por Luís Miguel Oliveira


Não necessariamente implausível nos seus pormenores decisivos: a película de nitrato ardia facilmente (como, se por mais nada, o leitor saberá através do "Cinema Paraíso" de Tornatore...) e os nazis gostavam muito de assistir a estreias de gala dos seus filmes de propaganda. Essa cena do incêndio, e como Tarantino não se tem cansado de dizer em entrevistas, reflecte o "poder do cinema" de modo simultaneamente "literal e metafórico". Ora tendo o Terceiro Reich vivido pelo cinema, e sido em parte não negligenciável uma construção para o cinema, que aqui o Terceiro Reich morra pelo cinema é menos um cúmulo absurdista do que um fecho de círculo, tão lógico e inevitável como qualquer outro. Num certo sentido, a Segunda Guerra de Tarantino é uma guerra decidida pelas imagens, combatida com as imagens.


Mais uma vez, o exagero é muito leve: toda a propaganda de qualquer dos lados em conflito sabia-o bem, fosse o lado dos alemães, dos americanos ou dos ingleses (Churchill chegou a comparar um filme, o "Mrs Miniver" de Wyler, a um "bombardeiro"). Elemento essencial da propaganda, consistia numa apropriação da imagem do inimigo, para a desviar, para a tornar na caricatura de si próprio. Em "Sacanas sem Lei" isto é, mais uma vez, "literal e metafórico": tudo se joga pela maneira como se podem controlar, interferir, dominar, as imagens do inimigo. É o que faz Shosanna, a miúda judia que gere o cinema que é o lugar central da acção, quando interpõe, por entre as imagens do filme de propaganda dos nazis, planos de si própria, em estética quase "riefenstahliana", a anunciar aos presentes o que lhes vai acontecer (e o plano em que o ecrã está já a ser consumido pelas chamas mas ainda se vê a imagem da rapariga a gritar algo como "olhem bem para mim, eu sou o rosto da vingança judaica!" é o plano mais absolutamente assombroso de "Sacanas sem Lei"). E é, a outro nível, o que fazem os "Bastardos", o grupo de americanos que dá ao nome ao filme mas tem uma presença quase secundária (em termos de "screen time", pelo menos), com a história das suásticas cravadas nas testas dos nazis que encontram pelo caminho: usar a imagem do inimigo, dominá-la, e utilizá-la contra ele (alguns dos nazis de "Sacanas sem Lei" terão tido mais dificuldade em viver anonimamente na América do Sul, depois da guerra, do que os seus equivalentes da vida real).

Justiça poética, claro, que como sabemos não tem forçosamente a ver nem com "justiça" nem com "poesia". É outra das coisas que liga "Sacanas sem Lei" aos filmes de Tarantino como "Kill Bill" ou "Deathproof"; e a personagem de Shosanna, cuja família é morta na primeira sequência, obviamente se aparenta com as mulheres em missão de vingança desses filmes.


Filme sobre imagens, "Sacanas sem Lei" não é menos um filme sobre palavras. Tarantino, dialoguista genial que chega ao ponto, nas entrevistas, de dizer que se vê como um "escritor" antes de ser ver como um cineasta, constrói praticamente todas as sequências como "peças de conversa", integralmente assentes num delicado equilíbrio do poder decorrente da linguagem e de quem a usa, e de como a usa - não é por acaso que uma das cenas mais prodigiosamente tensas de "Sacanas sem Lei" (a da taberna, com o jogo das adivinhas) decorre sob o signo dos sotaques e das expressões idiomáticas (mesmo quando são apenas gestuais, como descobre o pobre oficial inglês interpretado por Michael Fassbender). E ao centrar o filme, com uma expressão quase teórica, no poder das imagens e das palavras, no poder da linguagem visual e da linguagem falada, Tarantino conquista-lhe uma dimensão fria, "intelectual", nem por isso demasiado subterrânea, que transcende em muito a questão da Segunda Guerra Mundial. É um filme sobre o poder e sobre os instrumentos do poder, que hoje já não são analógicos mas digitais. Como se pega fogo a um monte de ficheiros de computador?



Teologicamente blogando...!

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Assim, o objectivo deste blog é triplo: reflectir o mundo contemporâneo e a cultura a partir da teologia nas suas diversas dimensôes; olhar crítico sobre a realidade; apresentar conteúdos relevantes e artísticos sobre temas variados.

Trata-se essencialmente de colocar a teologia em diálogo com o ser humano e com a cultura, sem. no entanto, se diluir nela.

Para aqueles que, porventura, possam visitar este blog, convida-os a partilhar as suas ideias, os seus pensamentos e a sua visão acerca do mundo e o do Homem, por forma a trilharmos caminhos de felicidade comum.

João Paulo Costa