quarta-feira, 2 de junho de 2010



A Eucaristia vista por um invisual

O som desperta a memória para imagens de outros tempos, o cheiro torna-se familiar e o paladar traz recordações que hoje ajudam Manuel Lopes Dias a ver a vida de outra forma.

A vivência da Eucaristia hoje é diferente. Os sentidos estão agora mais despertos e vêem o que os olhos não conseguem mais ver desde que aos 23 anos uma mina na Guerra do Ultramar, em Moçambique lhe tirou a visão. Mas é com profundidade que Manuel Lopes Dias aceita o convite para semanalmente celebrar o memorial do Sangue e Corpo de Cristo.

Numa entrevista à Ecclesia, Manuel Dias, coronel e vice-presidente da Associação dos Deficientes das Forças Armada, confessa que não vai à missa todos os Domingos, mas em cada eucaristia que celebra descobre sempre um aspecto novo.

Manuel Dias não vê e por isso, é através dos sons, dos cheiros e do paladar que celebra vivamente o sacramento da Eucaristia.

“Eu quase que como as palavras que ouço. Como-as e medito nelas”, afirma.

As palavras não são novas mas, afirma, “há sempre um aspecto novo”. Ao sair da Eucaristia, o vice-presidente da ADFA não quer falar, mas opta por “desfrutar” ainda do que teve acesso.

A Eucaristia é, segundo o director de Liturgia do Patriarcado de Lisboa, o Cónego Luís Silva, celebrada por homens concretos, com cinco sentidos, e por isso a corporeidade está presente.

“O cheiro dos incensos, a palavra, a música, a beleza dos paramentos apreciados através da visão, no fundo são os sentidos do ser humano que participam da celebração”.

O homem celebra “um mistério que o transcende, mas esse mistério é celebrado por homens concertos, com cinco sentidos”.

A Eucaristia é celebrada em comunidade. Um grupo de pessoas reunidas que se tornam presentes mesmo para quem não as vê. Manuel Dias sente a comunidade pulsar nos diferentes momentos da eucaristia mesmo quando esta não tem noção dos seus movimentos.

“Quando vou à igreja sinto-me rodeado pela comunidade, sejam crianças, jovens, idoso, homens e mulheres. É uma presença que se sente através do tacto, dos cheiros, pelo andar ou até pelo barulho que as pessoas fazem”, traduz o Coronel.

A comunidade torna-se efectiva quando reza a oração do «Pai-nosso». Esta é a oração comunitária eleita por Manuel Dias.

“Sinto uma vibração enorme quando se reza o «Pai-Nosso»”.

Entrar numa igreja é um convite espiritual que na rotina diária se esconde, mas que não escapa a quem vê de forma única. O cheiro do incenso é para Manuel Dias um convite imediato à espiritualidade.

“O incenso dá-me um ambiente espiritual de elevação, de serenidade, um apelo à interioridade”.

Sem ver o turíbulo a incensar o Evangeliário, o altar ou a assembleia, Manuel Dias imagina o incenso a subir.

Explica o Cónego Luís Silva que a incensação traduz a uma “envolvência”.

“A assembleia, os dons, o pão e o vinho, o altar, o crucifixo e o presidente são incensados, porque todos são divinos”.

O comungar é para Manuel Dias a recordação mais antiga que tem. “O paladar é igual ao de sempre”.

Depois da consagração dos dons por parte do presidente da celebração, Manuel Dias aguarda o partir da hóstia.

“Mesmo se estiver no fundo da igreja, eu ouço o padre a partir a hóstia. Ouço-o porque estou à espera disso para acompanhar a cerimónia”.

Manuel Dias vive a Eucaristia de forma sensitiva. Os seus sentidos aliam-se à razão e mostram um mundo novo, diferente da rotina em que se esconde a fé partilhada. O invisível fica visível perante o olhar de um invisual.

“Uma igreja antiga tem um cheiro diferente, cheira a milhares de pessoas que ali passaram. As pedras sugam as pessoas que ali passaram e sentimos um cheiro diferente”.

O alimento, o sentir a comunidade, o cheiro, a palavra escutada são um convite completo deixado como memorial para ser celebrado por todos os homens.

Agência Ecclesia
Pão de Cristo – O PÃO DA VIDA


LÊ EM SILÊNCIO E MEDITA. É CURTO E INSPIRADOR.

O que se segue é um relato verídico sobre um homem chamado Vítor.
Depois de meses sem encontrar trabalho, viu-se forçado a recorrer à mendicidade para sobreviver, o que o entristecia e envergonhava muito.
Numa tarde fria de inverno, encontrava-se nas imediações de um restaurante de luxo, quando viu chegar um casal.
Vítor pediu-lhe algumas moedas para poder comprar algo para comer.- Não tenho trocos - foi a resposta seca.
A mulher, ouvindo a resposta do marido, perguntou:- Que queria o pobre do homem?
- Dinheiro para comer. Disse que tinha fome - respondeu o marido encolhendo os ombros.-
Lourenço, não podemos entrar e comer comida farta de que não necessitamos e deixar um homem faminto aqui fora!
- Hoje em dia há um mendigo em cada esquina! Aposto que ele quer é dinheiro para beber!
- Mas eu tenho uns trocos comigo. Vou dar-lhe alguma coisa!
Mesmo de costas para eles, Vítor ouviu tudo o que diziam. Envergonhado, queria afastar-se e fugir dali, mas a voz amável da mulher reteve-o:
- Aqui tem qualquer coisa. Consiga algo de comer, e, ainda que a situação esteja difícil, não perca a esperança: há-de haver, nalgum lugar um trabalho para si. Faço votos para que o encontre.
- Muito obrigado, minha senhora. A senhora ajuda-me a recobrar o ânimo! Nunca esquecerei a sua gentileza.
- Vai comer o Pão de Cristo! Partilhe-o! - acrescentou ela com um largo sorriso, dirigido mais ao marido do que ao mendigo.
Vítor sentiu como se uma descarga eléctrica lhe percorresse o corpo.Foi a um lugar barato para comer um pouco. Gastou só metade do que tinha recebido e resolveu guardar o restante para o dia seguinte: comeria do 'Pão de Cristo' dois dias.Mas uma vez mais sentiu aquela descarga eléctrica a percorrer-lhe o corpo: O PÃO DE CRISTO!"Um momento! - pensou - Eu não posso guardar o 'Pão de Cristo' só para mim".Parecia-lhe como que escutar o eco de um hino antigo que tinha aprendido na catequese.
Naquele momento, passava um velhote ao seu lado.- Quem sabe, se este pobre homem não terá fome também - pensou - Tenho de partilhar o 'Pão de Cristo'.- Ouça - chamou Vítor - Quer entrar e comer uma comidinha quentinha?O velho voltou-se e encarou-o de olhar incrédulo.- Está a falar sério, amigo? O homem não acreditava em tanta sorte, até estar sentado à mesa coberta com uma toalha e com um belo prato de comida quente à frente.Durante a refeição, Vítor reparou que o homem envolveu um pedaço de pão num guardanapo de papel.- Está a guardar um pouco para amanhã? - Perguntou.- Não, não. É conheço um miúdo da rua e que tem passado mal ultimamente. Estava a chorar com fome, quando o deixei. Vou levar-lhe este pão.- O Pão de Cristo! - Recordou novamente as palavras da senhora e teve a estranha sensação de que havia um terceiro convidado sentado naquela mesa.Ao longe, os sinos da igreja pareciam entoar o velho hino que antes lhe tinha ressoado na cabeça.Os dois homens foram levar o pão ao menino faminto que o começou a devorar com alegria. Subitamente, deteve-se e chamou um cãozinho, um cachorrinho pequeno e assustado.- Toma lá. Metade é para ti - disse o menino. O Pão de Cristo também chegará para ti.O catraio tinha mudado de semblante. Pôs-se de pé e começou a correr com alegria.- Até logo! - disse Vítor ao velho - Nalgum lugar encontrará emprego. Não desespere! Sabe? - sussurrou - Isto que comemos é o Pão de Cristo. Foi uma senhora que me disse quando me deu aquelas moedas para o comprar. O futuro só nos poderá trazer algo de muito bom!Enquanto se afastava, Vitor reparou melhor no cachorrinho, que lhe farejava as pernas. Abaixou-se para o acariciar, quando descobriu que ele tinha uma coleira onde estava gravado o nome e o endereço do dono.Vítor pegou nele e caminhou um bom bocado até à casa dos donos do cão, e bateu à porta.Ao ver que o seu cãozinho tinha sido encontrado, o homem primeiro ficou todo contente; depois, tornou-se mais sério, pensando que se calhar o teriam roubado; mas, encarando a cara séria de Vítor e vendo no seu rosto um ar de dignidade, disse então:- Pus um anúncio no jornal oferecendo uma recompensa a quem encontrasse o cão. Tome!Vítor olhou o dinheiro, meio espantado, e disse:- Não posso aceitar. Eu apenas queria fazer bem ao animal.- Pegue-lhe! Para mim, o que você fez vale muito mais que isto! E olhe, se precisar de emprego, vá amanhã ao meu escritório. Faz-me falta, ao pé de mim, uma pessoa íntegra assim.Vítor, ao voltar pela avenida, como que volta a ouvir aquele hino que recordava a sua infância e que lhe ressoava no espírito. Chamava-se 'REPARTE O PÃO DA VIDA'.

sábado, 22 de maio de 2010

Io Sono l'Amore


De: Luca Guadagnino
Com: Tilda Swinton, Flavio Parenti, Edoardo Gabbriellini
Género: Drama
Classificacao: M/12 ITA, 2009, Cores, 120 min.

Corpos estranhos por Jorge Mourinha
(crítico de cinema no jornal Público)

Tilda Swinton é sublime num filme gloriosamente operático que reinventa o melodrama clássico e a saga familiar para um tempo em que eles já não existem
Atente-se na "chave" que dá título a este grandíssimo filme: Maria Callas, ela própria, interpretando a ária da "Mamma Morta" de Giordano, na banda-sonora do "Filadélfia" de Jonathan Demme, que Tilda Swinton vê uma noite na cama à beira de adormecer, antes de o marido chegar e mudar de canal sem sequer lhe perguntar o que está a ver. A frase que Callas canta é "Io sono l'amore" - "eu sou o amor" - e é nesse momento em que o marido a ignora como mera presença utilitária que a divina, gloriosa Tilda toma perfeita consciência do seu papel na poderosa família milanesa. Ela é a verdadeira "mamma morta" (aliás, mais tarde, alguém lhe dirá "tu não existes"), até o amor lhe cair do céu, numa noite de Inverno, na pessoa de um visitante inesperado que nem sequer fica para tomar café.
É complicado explicar o que se passa em "Eu Sou o Amor" sem correr o risco de menorizar a terceira ficção de Luca Guadagnino, porque o que eleva o filme ao estatuto de obra-prima é a abordagem operática, virtuosa, formalista, estilizada, hiper-romântica e pós-modernista com que o cineasta siciliano encara o melodrama clássico e a saga familiar, o modo como ele instala no classicismo do género um corpo estranho através de Tilda Swinton. Vamos, ainda assim, tentar: conhecemos os Recchi, poderosa família industrial milanesa, à volta da mesa do jantar de aniversário do patriarca, que acaba de decidir deixar o negócio de família ao filho e ao neto. Nesse jantar que respira um travo de passado glorioso, de aristocracia fora-de-tempo, percebemos também o papel que as mulheres nele desempenham: Rori, a matriarca, fiel guardiã da tradição familiar; Betta, a neta, de temperamento artístico, que começa a sentir-se limitada pelas expectativas da família; e Emma, a mulher do filho, a anfitriã perfeita, uma mulher discreta que aceitou representar o papel que lhe foi distribuído. Mas que, muito rapidamente, compreendemos que não lhe chega.

Emma é, evidentemente, Tilda Swinton, e a sua presença introduz o pauzinho na engrenagem da saga familiar; é o tal "corpo estranho" de que falávamos - não apenas pela sua personagem ser uma "intrusa" que, aceite pela família, nunca se sentiu inteiramente parte dela, mas também porque a presença física da actriz, pálida, alta, observadora, cria um contraste, lança um desequilíbrio, introduz uma nota de dissonância no conforto luxuoso que a rodeia. Esse contraste é depois amplificado pelas cenas de exteriores rurais onde se desenrola o "affaire" de Emma, de uma sensualidade exacerbada que se opõe à rigidez estruturada do palacete dos Recchi. Guadagnino mantém essa emoção a borbulhar subterraneamente durante todo o filme (sabiamente sublinhada pela música do compositor minimal John Adams), para apenas a deixar sair em momentos judiciosamente escolhidos, como uma panela de pressão que já quase não consegue aguentar a tensão.

É inevitável pensarmos em mestre Visconti (há um travo de "O Leopardo" a passar por aqui, um fôlego de grande ópera italiana) ou em mestre Sirk (a transcendência da história banal através da encenação arrebatada e gloriosa), mas o que é notável em "Eu Sou o Amor" é que Guadagnino consegue marcar a distância dos mestres, criar o seu próprio modo de os actualizar e modernizar, sem medo de correr riscos e sem se retrair para não parecer ambicioso. Fá-lo com a preciosa ajuda da divina Tilda, a comprovar como é uma das maiores actrizes contemporâneas, e de um elenco impecável onde encontramos o actor e encenador Pippo Delbono e os veteranos Gabriele Ferzetti e Marisa Berenson (é impossível não recordar "Morte em Veneza"...), como quem sublinha que a estrutura rígida do melodrama exige o tal corpo estranho para rebentar por todos os lados e construir algo de novo que se insere numa tradição e a reinventa sem pruridos. "Eu Sou o Amor" é uma obra-prima.



Oração Pentecostes





vem, Espírito de Deus,

vem como uma noite de fogo

e acorda o que em nós, na luz do dia dorme


vem, memória aberta, sobre o que acontece

e cumpra-se o que às nossas pobres visões presentes falta


vem, memória da casa, de corpo não enclausurada

e que se desloque e a sua desordem


vem, deslocação da estância, negação da estatística

e do algortimo,

que nos ensinas a ordem através do ruído

e que só na mobilidade encontras o repouso


vem, força de Deus, deslocação do ponto fixo,

da casa murada e fria e defendida:

que um terramoto faça tremer a língua e estremecer o corpo

que não é neutro nunca se o calor se o calor o habita


vem, sabedoria, dizer à nossa vida que o racional e lacunar,

efeito de margem, e só há saber das ilhas

vem ensinar à nossa vida a finitude

e que recebamos sem extâses inúteis nem cegueira

o invisível que em nós trabalha o barro


vem, amor derramado em nossos corações,

vem lembrar que um coração frio

não pode compreender uma palavra de fogo

e que só há vida e piedade e coragem porque o amor nos move


vem, instante de fogo e de ternura,

alegria sem medo do ilimitado do corpo e do ilimitado do dom

que invocamos neste fim de tarde

e que nos ensinas a rezar


De José Augusto Morão, O Nome e a forma, Pedra Angular, 65-66.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

A desnudação do corpo


A desnudação do corpo

A instantaneidade e a mediatização da vida pública é um dos efeitos da dita sociedade digital e da era da globalização. A informação parece ser sinónimo de conhecimento e de verdade absoluta da realidade. Tudo nos é dado em directo, ao segundo, como que tudo acontecesse aqui e agora. Os acontecimentos passam a verdade absoluta logo que são noticiados, sem hipótese do contraditório, criando a ideia generalizada de que tudo e todos são iguais.

É neste clima de suspeição e de nebulosa existencial, onde ninguém parece saber para onde vamos, que surge a perversão dos corpos, onde cada um vende e compra no grande mercado da informação as notícias mais convenientes à ideologia corrente. Isto está bem patente no célebre slogan britânico: “Provavelmente Deus não existe. Goza a vida”. E aqueles que, por limitações da mente e do corpo, sociais ou económicas, não podem gozar a vida? Quem lhes fará justiça? O homem dançante e inebriado de Nietzsche? Como afirma brilhantemente o convertido pensador Chesterton: “os críticos modernos da autoridade religiosa assemelham-se àquelas pessoas que atacam a polícia sem nunca terem ouvido falar de ladrões” (Ortodoxia, Alêtheia, p. 43).

A lógica actual foi reduzida à sua máxima simplicidade, pois o que parece contar como exclusivo são as premissas que geram conclusões viciadas. E as variantes de um determinado facto não deverão contar como válidas? Um exemplo claro dessas premissas falaciosas são os casos de pedofilia na Igreja. Em virtude do envolvimento de alguns membros do clero, aliás reduzidos, se comparados com milhares de casos noutros sectores da vida familiar e pública das sociedades modernas, alguns concluem que o crime de pedofilia é uma descoberta recente!

No meio de tudo isto uma questão, entre muitas, se levanta: se foram alguns membros do clero a cometer tais actos, porque é que alguns pedem a condenação do Papa e não a aplicação da justiça humana aos padres que cometeram esses crimes? Alguns argumentarão que muitos deles já morreram. A conclusão torna-se lógica: a haver condenação que seja o Papa. O que é estranho, porque, por exemplo, se alguns dos membros da ONU cometessem este ou outro tipo de crime, ninguém se lembraria de pedir a condenação do Secretário-Geral da ONU! A lógica anti-católica de alguns grita ruidosamente que a Igreja entre na denúncia dos seus membros, colocando-os inteiramente à mercê do mediatismo e do espectáculo. Essa é a lógica do Big Brother, neste caso religioso, em que a Igreja nunca poderá entrar, até por uma questão de justiça e verdade para com as vítimas. A desnudação do corpo é uma constante ao longo da história. Foi assim com Jesus, maltratado e injuriado, acusado inocentemente; como “servo sofredor” suportou sobre si todas as enfermidades. As suas vestes foram repartidas e sobre elas deitaram sortes. Esse foi o grande espectáculo mediático de Pôncio Pilatos, apoiado por fariseus, incomodados e sedentos de poder e fama. Será o discípulo mais do que o Mestre?

Neste sentido, ninguém pode estar à espera, embora fosse o desejo diabólico de muitos bem-falantes, que a Igreja fizesse um briefing ou uma abertura mediática nos telejornais a acusar os seus sacerdotes e bispos que cometeram tais crimes. Um Pai que ama o seu Filho não o condena nem o entrega à condenação pública de qualquer forma. À Igreja, como corpo de Cristo, cabe-lhe sim agir com Verdade e na Verdade [Caritas in Veritate], discernindo o que notícia e o que é facto. Mesmo sendo clara nas suas normas e decidida nas suas atitudes, parece que o coro dos lobbys sem rosto (relativistas, gays, ateus militantes, grupos económicos, sociedades secretas…) continua a gritar mais alto, pedindo a crucifixação do inocente, qual “cordeiro levado ao matadouro”.

Isto revela que estamos claramente perante uma tentativa de decapitação de Bento XVI, que é, alias, um dos grandes pensadores do séc. XX e XXI. Pensador e profeta, porque capaz de colocar as questões centrais da vida humana, no tempo e lugar próprios, sem se esconder por detrás do «politicamente correcto» e dos interesses político-religiosos. Talvez seja isso que esteja a incomodar alguns intelectuais ultra-modernistas. É graças ao pensamento dominante, aos profetas da corte e do imediato, para quem Deus não tem direito a habitar no espaço público e o ser humano é reduzido ao factum, que assistimos à derrocada do estilo de vida moderna e da civilização Ocidental.

O momento que a Igreja vive é de purificação e de renovação. Diante do diálogo com o mundo e a cultura, ela sabe discernir prudentemente as decisões a tomar. Os seus membros, assistidos pelo Espírito de Deus, terão de olhar para o horizonte da conversão e da reconciliação permanente. A grandeza da Igreja não está nos seus bens patrimoniais, está no seu testemunho profético e ousado de anunciar que Cristo está vivo e que cada ser humano necessita de ser perdoado e amado setenta vezes sete. Isso é incómodo e incómoda? Então, eis a Igreja a renascer das cinzas, mesmo se alguns franco-atiradores continuam a vaticinar o seu fim!

João Paulo Costa

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Poema Quaresmal...



viagem no deserto

abre-nos, Deus, a porta
através das águas
para a grande viagem no deserto:
o combate com a morte no campo da vida,
a travessia dos limites, a nebulosa dos olhos

não se ensurdeça o nosso coração
porque a luta noctuma com o teu Nome
nos deixou no corpo marcas

dá-nos a graça de atravessar o riacho da vida
mesmo coxeando;
que caminhemos com a ligeireza
e a elegância do animal
que busca o esplendor do verdadeiro
nas coisas provisórias

e que desse combate com as imagens
nos aproximemos do horizonte da tua casa
donde vejamos as sementes do amor cobrindo a eira,

Deus que ligas o céu e a terra no teu Filho Jesus
e no Espírito


José Augusto Mourão
In O Nome e a Forma, ed. Pedra Angular.