sábado, 22 de maio de 2010

Io Sono l'Amore


De: Luca Guadagnino
Com: Tilda Swinton, Flavio Parenti, Edoardo Gabbriellini
Género: Drama
Classificacao: M/12 ITA, 2009, Cores, 120 min.

Corpos estranhos por Jorge Mourinha
(crítico de cinema no jornal Público)

Tilda Swinton é sublime num filme gloriosamente operático que reinventa o melodrama clássico e a saga familiar para um tempo em que eles já não existem
Atente-se na "chave" que dá título a este grandíssimo filme: Maria Callas, ela própria, interpretando a ária da "Mamma Morta" de Giordano, na banda-sonora do "Filadélfia" de Jonathan Demme, que Tilda Swinton vê uma noite na cama à beira de adormecer, antes de o marido chegar e mudar de canal sem sequer lhe perguntar o que está a ver. A frase que Callas canta é "Io sono l'amore" - "eu sou o amor" - e é nesse momento em que o marido a ignora como mera presença utilitária que a divina, gloriosa Tilda toma perfeita consciência do seu papel na poderosa família milanesa. Ela é a verdadeira "mamma morta" (aliás, mais tarde, alguém lhe dirá "tu não existes"), até o amor lhe cair do céu, numa noite de Inverno, na pessoa de um visitante inesperado que nem sequer fica para tomar café.
É complicado explicar o que se passa em "Eu Sou o Amor" sem correr o risco de menorizar a terceira ficção de Luca Guadagnino, porque o que eleva o filme ao estatuto de obra-prima é a abordagem operática, virtuosa, formalista, estilizada, hiper-romântica e pós-modernista com que o cineasta siciliano encara o melodrama clássico e a saga familiar, o modo como ele instala no classicismo do género um corpo estranho através de Tilda Swinton. Vamos, ainda assim, tentar: conhecemos os Recchi, poderosa família industrial milanesa, à volta da mesa do jantar de aniversário do patriarca, que acaba de decidir deixar o negócio de família ao filho e ao neto. Nesse jantar que respira um travo de passado glorioso, de aristocracia fora-de-tempo, percebemos também o papel que as mulheres nele desempenham: Rori, a matriarca, fiel guardiã da tradição familiar; Betta, a neta, de temperamento artístico, que começa a sentir-se limitada pelas expectativas da família; e Emma, a mulher do filho, a anfitriã perfeita, uma mulher discreta que aceitou representar o papel que lhe foi distribuído. Mas que, muito rapidamente, compreendemos que não lhe chega.

Emma é, evidentemente, Tilda Swinton, e a sua presença introduz o pauzinho na engrenagem da saga familiar; é o tal "corpo estranho" de que falávamos - não apenas pela sua personagem ser uma "intrusa" que, aceite pela família, nunca se sentiu inteiramente parte dela, mas também porque a presença física da actriz, pálida, alta, observadora, cria um contraste, lança um desequilíbrio, introduz uma nota de dissonância no conforto luxuoso que a rodeia. Esse contraste é depois amplificado pelas cenas de exteriores rurais onde se desenrola o "affaire" de Emma, de uma sensualidade exacerbada que se opõe à rigidez estruturada do palacete dos Recchi. Guadagnino mantém essa emoção a borbulhar subterraneamente durante todo o filme (sabiamente sublinhada pela música do compositor minimal John Adams), para apenas a deixar sair em momentos judiciosamente escolhidos, como uma panela de pressão que já quase não consegue aguentar a tensão.

É inevitável pensarmos em mestre Visconti (há um travo de "O Leopardo" a passar por aqui, um fôlego de grande ópera italiana) ou em mestre Sirk (a transcendência da história banal através da encenação arrebatada e gloriosa), mas o que é notável em "Eu Sou o Amor" é que Guadagnino consegue marcar a distância dos mestres, criar o seu próprio modo de os actualizar e modernizar, sem medo de correr riscos e sem se retrair para não parecer ambicioso. Fá-lo com a preciosa ajuda da divina Tilda, a comprovar como é uma das maiores actrizes contemporâneas, e de um elenco impecável onde encontramos o actor e encenador Pippo Delbono e os veteranos Gabriele Ferzetti e Marisa Berenson (é impossível não recordar "Morte em Veneza"...), como quem sublinha que a estrutura rígida do melodrama exige o tal corpo estranho para rebentar por todos os lados e construir algo de novo que se insere numa tradição e a reinventa sem pruridos. "Eu Sou o Amor" é uma obra-prima.



Oração Pentecostes





vem, Espírito de Deus,

vem como uma noite de fogo

e acorda o que em nós, na luz do dia dorme


vem, memória aberta, sobre o que acontece

e cumpra-se o que às nossas pobres visões presentes falta


vem, memória da casa, de corpo não enclausurada

e que se desloque e a sua desordem


vem, deslocação da estância, negação da estatística

e do algortimo,

que nos ensinas a ordem através do ruído

e que só na mobilidade encontras o repouso


vem, força de Deus, deslocação do ponto fixo,

da casa murada e fria e defendida:

que um terramoto faça tremer a língua e estremecer o corpo

que não é neutro nunca se o calor se o calor o habita


vem, sabedoria, dizer à nossa vida que o racional e lacunar,

efeito de margem, e só há saber das ilhas

vem ensinar à nossa vida a finitude

e que recebamos sem extâses inúteis nem cegueira

o invisível que em nós trabalha o barro


vem, amor derramado em nossos corações,

vem lembrar que um coração frio

não pode compreender uma palavra de fogo

e que só há vida e piedade e coragem porque o amor nos move


vem, instante de fogo e de ternura,

alegria sem medo do ilimitado do corpo e do ilimitado do dom

que invocamos neste fim de tarde

e que nos ensinas a rezar


De José Augusto Morão, O Nome e a forma, Pedra Angular, 65-66.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

A desnudação do corpo


A desnudação do corpo

A instantaneidade e a mediatização da vida pública é um dos efeitos da dita sociedade digital e da era da globalização. A informação parece ser sinónimo de conhecimento e de verdade absoluta da realidade. Tudo nos é dado em directo, ao segundo, como que tudo acontecesse aqui e agora. Os acontecimentos passam a verdade absoluta logo que são noticiados, sem hipótese do contraditório, criando a ideia generalizada de que tudo e todos são iguais.

É neste clima de suspeição e de nebulosa existencial, onde ninguém parece saber para onde vamos, que surge a perversão dos corpos, onde cada um vende e compra no grande mercado da informação as notícias mais convenientes à ideologia corrente. Isto está bem patente no célebre slogan britânico: “Provavelmente Deus não existe. Goza a vida”. E aqueles que, por limitações da mente e do corpo, sociais ou económicas, não podem gozar a vida? Quem lhes fará justiça? O homem dançante e inebriado de Nietzsche? Como afirma brilhantemente o convertido pensador Chesterton: “os críticos modernos da autoridade religiosa assemelham-se àquelas pessoas que atacam a polícia sem nunca terem ouvido falar de ladrões” (Ortodoxia, Alêtheia, p. 43).

A lógica actual foi reduzida à sua máxima simplicidade, pois o que parece contar como exclusivo são as premissas que geram conclusões viciadas. E as variantes de um determinado facto não deverão contar como válidas? Um exemplo claro dessas premissas falaciosas são os casos de pedofilia na Igreja. Em virtude do envolvimento de alguns membros do clero, aliás reduzidos, se comparados com milhares de casos noutros sectores da vida familiar e pública das sociedades modernas, alguns concluem que o crime de pedofilia é uma descoberta recente!

No meio de tudo isto uma questão, entre muitas, se levanta: se foram alguns membros do clero a cometer tais actos, porque é que alguns pedem a condenação do Papa e não a aplicação da justiça humana aos padres que cometeram esses crimes? Alguns argumentarão que muitos deles já morreram. A conclusão torna-se lógica: a haver condenação que seja o Papa. O que é estranho, porque, por exemplo, se alguns dos membros da ONU cometessem este ou outro tipo de crime, ninguém se lembraria de pedir a condenação do Secretário-Geral da ONU! A lógica anti-católica de alguns grita ruidosamente que a Igreja entre na denúncia dos seus membros, colocando-os inteiramente à mercê do mediatismo e do espectáculo. Essa é a lógica do Big Brother, neste caso religioso, em que a Igreja nunca poderá entrar, até por uma questão de justiça e verdade para com as vítimas. A desnudação do corpo é uma constante ao longo da história. Foi assim com Jesus, maltratado e injuriado, acusado inocentemente; como “servo sofredor” suportou sobre si todas as enfermidades. As suas vestes foram repartidas e sobre elas deitaram sortes. Esse foi o grande espectáculo mediático de Pôncio Pilatos, apoiado por fariseus, incomodados e sedentos de poder e fama. Será o discípulo mais do que o Mestre?

Neste sentido, ninguém pode estar à espera, embora fosse o desejo diabólico de muitos bem-falantes, que a Igreja fizesse um briefing ou uma abertura mediática nos telejornais a acusar os seus sacerdotes e bispos que cometeram tais crimes. Um Pai que ama o seu Filho não o condena nem o entrega à condenação pública de qualquer forma. À Igreja, como corpo de Cristo, cabe-lhe sim agir com Verdade e na Verdade [Caritas in Veritate], discernindo o que notícia e o que é facto. Mesmo sendo clara nas suas normas e decidida nas suas atitudes, parece que o coro dos lobbys sem rosto (relativistas, gays, ateus militantes, grupos económicos, sociedades secretas…) continua a gritar mais alto, pedindo a crucifixação do inocente, qual “cordeiro levado ao matadouro”.

Isto revela que estamos claramente perante uma tentativa de decapitação de Bento XVI, que é, alias, um dos grandes pensadores do séc. XX e XXI. Pensador e profeta, porque capaz de colocar as questões centrais da vida humana, no tempo e lugar próprios, sem se esconder por detrás do «politicamente correcto» e dos interesses político-religiosos. Talvez seja isso que esteja a incomodar alguns intelectuais ultra-modernistas. É graças ao pensamento dominante, aos profetas da corte e do imediato, para quem Deus não tem direito a habitar no espaço público e o ser humano é reduzido ao factum, que assistimos à derrocada do estilo de vida moderna e da civilização Ocidental.

O momento que a Igreja vive é de purificação e de renovação. Diante do diálogo com o mundo e a cultura, ela sabe discernir prudentemente as decisões a tomar. Os seus membros, assistidos pelo Espírito de Deus, terão de olhar para o horizonte da conversão e da reconciliação permanente. A grandeza da Igreja não está nos seus bens patrimoniais, está no seu testemunho profético e ousado de anunciar que Cristo está vivo e que cada ser humano necessita de ser perdoado e amado setenta vezes sete. Isso é incómodo e incómoda? Então, eis a Igreja a renascer das cinzas, mesmo se alguns franco-atiradores continuam a vaticinar o seu fim!

João Paulo Costa