quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Porque vale a pena ver Avatar?



Avatar
Este filme vai salvar Hollywood?



"Avatar está a ser escrutinado como poucos filmes o foram na história do cinema: porque é o primeiro de James Cameron desde "Titanic"; porque é o primeiro "blockbuster" sério a explorar a fundo o 3D digital. E há até quem coloque nos seus ombros o manto da salvação de uma indústria em crise. Eis o desafio: sente-se e espere uma experiência que não é possível viver a não ser numa sala de cinema.

A pergunta não tem sido posta desta maneira tão óbvia. Mas é essa a questão na cabeça dos observadores: será o novo filme de James Cameron o "oráculo" que pode apontar a saída para a crise que Hollywood enfrenta?
E porque o seria? Primeiro, porque é a primeira longa-metragem do realizador canadiano em doze anos, desde "Titanic" (1997) que, com quase dois milhares de milhões de dólares de receitas, se tornou no filme de maior sucesso de sempre.
Porque, depois, é o filme mais ambicioso a tirar partido da nova tecnologia de 3D digital - e o primeiro, que não é uma animação nem um filme de género, a pretender usar a técnica como algo mais do que simples "truque" de feira para chamar audiência, mas antes como uma janela para um universo criativo.

Porque, enfim, Cameron é um visionário que, de cada vez que filma, expande as fronteiras do que a tecnologia permite (bem como a dimensão das úlceras dos estúdios). Para "Avatar" criou um novo sistema de câmaras tridimensionais e refinou a tecnologia de "performance capture" que permite transformar em animação digital o registo do movimento e da expressão facial dos actores - chutando para canto as tentativas de Robert Zemeckis em "Polar Express", "Beowulf" ou "Um Conto de Natal".

Mas, sobretudo, porque Hollywood, ela própria, não sabe bem para onde se virar para manter o seu estatuto de fábrica de sonhos. E, ao entregar-se nas mãos de Cameron, cineasta gloriosamente incontrolável que escreveu "Avatar" há quinze anos e preferiu guardá-lo na gaveta até a tecnologia lhe permitir cumprir a sua visão, não há garantias que a salvação que procura esteja ao seu alcance. Porque, como o próprio disse à Associated Press, quanto mais alto for elevada a fasquia das expectativas, maior pode ser a desilusão.

Crise 2009

Dizer que Hollywood precisa de ser salva parece uma afirmação lírica. Os números de bilheteira americanos são escrutinados meticulosamente ao longo do ano e, apesar da oscilação dos comentadores entre a previsão da catástrofe e os elogios triunfalistas, todos os anos se batem recordes de receitas e de espectadores.
Mas, por trás dos triunfos globais de "blockbusters" descartáveis como "2012" ou "Transformers: Retaliação", ou dos êxitos de produções modestas como "A Ressaca", "Distrito 9" ou "Actividade Paranormal", a crise não passou ao lado da indústria.
Os fundos de investimento globais, uma das mais fiáveis fontes de financiamento nos últimos anos, reduziram o investimento ou fecharam a torneira. O mercado do DVD, uma das maiores fontes de receitas, entrou em queda e a transição para o formato Blu-Ray está longe de compensar o dinheiro perdido. As seis grandes "majors" hollywoodianas reduziram o seu volume de estreias anuais, fecharam ou venderam divisões especializadas ou menos rentáveis, entraram em contenção de despesas e fizeram despedimentos em larga escala. E, pior, os "blockbusters" têm-se estampado. 2009 foi um ano negro para duas das seis grandes, a Universal e a Disney, que substituiram prontamente as suas direcções criativas.

O que complica tudo é que, hoje, a regra é um filme de Hollywood lucrar um terço da sua receita em sala, um terço no circuito internacional e um terço em DVD, fora os valores astronómicos investidos no "marketing". Se o terço do DVD se vem abaixo e e se o filme não rende em sala? Houston, temos um problema.
Ainda não começámos sequer a falar da oferta televisiva entre canais generalistas e de cabo e a disponibilização de programas online, do "home cinema" (apesar de tudo, é mais barato ficar em casa a ver um DVD no LCD do que meter-se no carro para ir ver um filme ao multiplex), ou da partilha de ficheiros online que tanto disponibiliza clássicos que não se vêem nas salas ou encontram em DVD como versões pirateadas dos novos lançamentos em sala.

No meio desta paisagem, "Avatar" é, visto por um prisma, o sonho de qualquer estúdio: uma experiência cinematográfica que não é possível viver a não ser numa sala de cinema. Um filme realizado por um cineasta de sucesso garantido, que inventou uma nova maneira de criar efeitos visuais, que força os limites da tecnologia. Em rigor, a narrativa de "Avatar" não precisa do 3D para nada: um ex-Marine paraplégico descobre uma razão para viver através do "avatar" que controla no distante planeta Pandora junto dos Na'vi, povo que vive em harmonia com a natureza e que ele acaba por liderar numa revolta contra os humanos que querem explorar as riquezas naturais do planeta. O 3D introduz apenas uma dimensão extra no universo visual que justifica em absoluto o deslumbramento.

Mas, por outro prisma, "Avatar" é o pior pesadelo de qualquer estúdio: não tem uma estrela de primeira grandeza a transportá-lo (Sigourney Weaver tem apenas participação especial), não é uma sequela, não se baseia numa personagem de BD, e custou tão caro que é legítimo perguntar se alguma vez recuperará o investimento (fala-se de 500 milhões de dólares entre rodagem, pós-produção e "marketing", número que a Twentieth Century-Fox já desmentiu como "ridículo" e que fontes põem mais próximo dos 250 milhões). E é este filme que vai salvar Hollywood?

Armas secretas

A "arma secreta" de "Avatar" são duas. Uma chama-se "3D digital". A outra chama-se "fé".
O cinema em 3D ainda tem a reputação de truque de feira que ganhou quando surgiu pela primeira vez nos anos 1950, com os óculos baratos de duas cores que davam uma dor de cabeça desgraçada ao espectador. A técnica foi abandonada ao fim de um par de anos. Até que a tecnologia de projecção digital permitiu resolver o problema: hoje, o 3D é mais agradável para o espectador, que adiciona alguns milhões de dólares ao orçamento de um filme mas permite igualmente aos estúdios e aos exibidores cobrar uma sobretaxa no bilhete para cobrir o aluguer e manuseamento dos óculos. Ou seja: como o bilhete é mais caro, o estúdio e o exibidor ganham mais e, por conseguinte, lucram mais.
É esse lado pragmático, financeiro, que explica porque é que a indústria está tão interessada em impôr o 3D: uma fonte de receitas que pode representar a diferença entre ganhar ou perder dinheiro - razão pela qual Francis Coppola é um céptico do formato.

No entanto, até agora, a tecnologia tem sido maioritariamente restringida a produções específicas, filmes-concerto, animação e filmes de terror, usada como truque visual. Se, na animação, "A Idade do Gelo 3" e "Altamente" confirmaram que a técnica, bem usada, pode ser mais do que isso, "Avatar" é a primeira tentativa de aplicar a tecnologia a um filme "sério" - e o seu sucesso poderá abrir as portas à utilização da técnica como mais uma ferramenta na caixa dos realizadores em vez de um "gimmick" visual de vida efémera ou uma técnica limitada a géneros específicos. Cameron usa o 3D como janela para o universo de Pandora, como um modo de reforçar os seus cuidadíssimos efeitos visuais; mais do que "épater le bourgeois", a ideia é tornar este universo tão fotorrealista como o mundo lá fora. E, no processo, possibilitar um retorno ao ponto zero do maravilhamento que o cinema criou nos inícios.

Cameron é a primeira pessoa a admiti-lo, como disse a Dana Goodyear, da revista "The New Yorker": "A ironia é que as pessoas pensam [em "Avatar"] como um filme em 3D e a discussão não passa daí. Mas penso que, quando o virem, essa discussão desaparece. A tecnologia é suficientemente avançada para desaparecer sozinha" - e apenas ficar a história que ela serve. E tem razão: a proeza técnica esbate-se à medida que o filme avança.



É isso que justifica a "fé" como arma secreta - fé da Fox em que Cameron seja capaz de cumprir o que prometeu: fazer um filme capaz de recuperar esse deslumbramento primordial de ver qualquer coisa que nunca se conseguira ver antes. E, sobretudo, também fé em que Cameron consiga com "Avatar" um novo "Titanic", um filme de tal maneira abrangente no seu "código genético" que toda a gente o queira ir ver.

Não é, por isso, casual que o próprio Cameron, numa entrevista com Geoff Boucher, do "Los Angeles Times", tenha alinhado "Avatar" com filmes como "Danças com Lobos" (Kevin Costner, 1990), "A Floresta Esmeralda" (John Boorman, 1985) e "A Brincar nos Campos do Senhor" (Hector Babenco, 1991), ou invocado o nome de escritores clássicos como Rudyard Kipling, Edgar Rice Burroughs ou Joseph Conrad. O que filmou, na realidade, é a história de uma viagem iniciática numa outra cultura dobrada de redenção e redescoberta - Jake Sully, o Marine interpretado por Sam Worthington, transita da cultura guerreira humana para a cultura guerreira Na'vi através de uma série de rituais de passagem claramente inspirados pelas aventuras exóticas que fizeram sensação nos primeiros tempos do cinema.

A esse nível, então, "Avatar" é uma jogada triplamente arriscada. Não apenas usa uma técnica de um modo como nunca foi usada antes como o faz num filme que invoca uma herança criativa esquecida, e, sobretudo, implica um colossal investimento financeiro que repousa nos ombros de um cineasta incontrolável. Cameron trabalha dentro de Hollywood, sim, mas nos seus termos: "Exterminador Implacável 2" (1991) foi o primeiro filme a ultrapassar os 100 milhões de dólares de orçamento, "Titanic" o primeiro a passar os 200 milhões - de tal maneira que a Fox se viu obrigada a encontrar um parceiro de financiamento e Cameron abdicou do seu salário para garantir controle criativo (depois do êxito, a Fox restituiu-lhe o dinheiro).

Depois do triunfo de "Titanic", nenhum estúdio ousaria restringir Cameron. Mas uma indústria com histórias de horror de realizadores megalómanos ("As Portas do Céu", de Michael Cimino, "enterrou" a United Artists em 1980) não se pode sentir à vontade ao colocar uma aposta tão forte como "Avatar" nas mãos de um dos raros cineastas que é impossível controlar.
Sejamos honestos: com toda a atenção que tem gerado, dificilmente "Avatar" será um desastre de bilheteira, e convirá não esquecer que 2009 tem provado ser um ano de ouro para a ficção científica - a "space opera" pós-moderna de "Star Trek" (J. J. Abrams, 2009) e a sátira sociopolítica de "Distrito 9" (Neill Blomkamp, 2009) ressoaram com audiências globais de modos improváveis. "Avatar" cruza esses ângulos e mais, numa espécie de "megamix" dos "greatest hits" dos filmes de aventuras siderais.

Mas, como se costuma dizer, "cada caso é um caso". E convém sempre recordar as palavras sábias do grande argumentista William Goldman: em Hollywood, ninguém sabe nada. Só acham que sabem. E é por isso que "Avatar" pode não salvar Hollywood. Mas da reputação já ninguém o livra.
E as expectativas? Talvez seja melhor deixá-las em casa.

Jorge Mourinho, Ípsilon.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Arte

Representações do Natal na arte cristã


Nascimento de Jesus (séc. IV, Milão)

A cena da natividade, o nascimento de Jesus há 2000 anos, é das representações mais emblemáticas na arte cristã. A profundidade do acontecimento marcou e continua a marcar gerações, apesar de tantas invasões de outras figuras quer por afastamento da realidade central do Natal, quer por interesses comerciais.

Adoração dos Reis Magos (Séc. IV, Roma)

Até à Idade Média, a cena da natividade mantém os elementos comuns. A presença de Maria, sentada com o Menino sobre os joelhos, o Menino envolto em ligaduras, a presença de José, pensativo e aparentemente apartado da cena central com gesto de apreensão. A partir da Idade Média, alguns factores irão ter influência nestas representações. A espiritualidade da época vai reflectir-se numa tendência humanizante que se começa a sentir nestas representações.

É a partir do século XIV que surgem os motivos para a representação individualizada do Menino Jesus. A cena da natividade continua presente, mas com outras pretensões. Maria adora o Menino, José é representado em adoração com aspecto ancião.

No século XV, a individualização da imagem do Menino é clara. É apresentado nu, normalmente de pé e com o globo na mão. A cruz é um elemento comum, estabelecendo um paralelismo entre a natividade e a Paixão.

Domenico da Tolmezzo (séc. XV)

No século XVI assiste-se a um enorme desenvolvimento. O Menino aparece em variadíssimas atitudes. De pé, prosseguindo os esquemas anteriores, deitado sobre a cruz ou simplesmente adormecido, sentado. Começam as produções de adereços associados ao culto individualizado do Menino Jesus. Os adereços, como as camas, as cadeiras, as vestes extraordinariamente elaboradas, tudo muito ao gosto e modas da época, irão ser uma marca até aos dias de hoje.

Dirck Barendsz (séc. XVI)

Ao longo dos séculos XVII e XVIII chegam até nós inúmeros e ricos exemplos destas características associadas ao culto do Menino e à expressão devocional.

Paul Gaugin (séc. XIX)

A graciosidade com que as imagens do Menino são apresentadas corresponde, em muitos casos, aos desejos dos encomendadores. Em todo o caso, nos vários tempos e épocas culturais, a figuração do Menino, apela à consciência de que o Céu desce e toca a terra, toma a nossa condição, aparece segundo os nossos gostos e perspectivas para nos elevar e projectar na medida divina.

Gaudí (séc. XX)

Desde cedo a arte cristã usou a imagem do Menino para transmitir a mensagem evangélica, mas, acima de tudo, com carácter celebrativo. A imagem associa-se à celebração da fé, à vivência dos sacramentos e à projecção, na vida dos cristãos, desses acontecimentos da revelação. A figura de Cristo, representada inicialmente através de múltiplos símbolos e variados modelos iconográficos, ganha um relevo imprescindível.

P. António Pedro Boto
Director do Centro Cultural do Patriarcado de Lisboa
In Correio da Manhã
25.12.09

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

17 maneiras de rezar

17. Trabalhar com as próprias mãos

Trabalhar com as próprias mãos
em tarefas caseiras, na costura,
no seu ofício, na bricolagem
e fechar o rádio e todo o zunzum interior
escutar o que fala sem palavras
enquanto as mãos se ocupam
e ocupam a superfície da alma.
Ou então, conduzir um automóvel
muito distendido, atento, delicado
uma vez que essa ocupação deixa livre
um pensamento sem pensamento
que amadurece algures.


16. Nem as imagens nem o texto

Nem as imagens, nem o texto,
nem o lugar, nem a hora
nem a palavra que brota do coração
nem a repetição aborrecida e atenta
nem mesmo o silêncio
mas simplesmente o real
terrivelmente real e chão, as coisas, a superfície
a conversação sem finalidade
as tarefas, os lazeres,
comer, sonhar, dormir
e o sofrimento intolerável, indizível
de tal modo sofredor que nem sofremos
a espera nua do que deve vir ao mundo
para que a terra seja como o céu.

15. Duvidar, duvidar de Deus intensamente

Duvidar, duvidar de Deus intensamente
o quê, haverá um Deus bom e todo poderoso
com toda esta crueldade na natureza
com a infernal crueldade humana
as crianças morrendo de fome, os explorados,
os nevróticos, os embrutecidos, os alcoólicos, todos os [resíduos humanos?
É bela, a imagem de Deus!
E o que é Deus
senão pobre pequena ideia elaborada
no planeta em que somos
nada, no seio do universo brilhando
para dimensões inimagináveis
Objecções, objecções, agonia de Deus
no coração do homem de fé.
Ele respondeu cem vezes, mas trata-se de ausência
Pobre Deus em agonia
como o Verbo idêntico a Si no jardim das oliveiras
enquanto os seus melhores amigos dormiam…
Não é realmente nada pouco vigiar. Na sua agonia.

14. Sair da igreja

Sair da igreja
deixar a celebração
porque não se aguenta mais
porque não podemos continuar
por causa do excesso de intensidade e de sobranceria
do que é considerado dever aí ser feito
em contraste com o desaire aflitivo do que de facto se passa
deixar sem escândalo, sem contestação, com tristeza
e o desejo resistente que de novo se eleve
como? como?
a luz do grande poema onde se inauguram todas as coisas.

13. Permanecer em paz

Permanecer em paz
que é a harmonia dos poderes
para lá (certamente) do turbilhão
para lá da abstenção serena
para lá do abandono voluntário dos heróis
na harmonia dos poderes
coincidindo com a mais humilde humildade
isto, na mediocridade dos dias
sem altivez, sem saber e algumas vezes sem graça.

12. Ouvir música

Ouvir música
A Missa em Si menor de Bach, por exemplo,
especialmente Incarnatus, Crucifixus, Resurrexit
ou então outra coisa
não necessariamente música religiosa
mas escutar na profundidade
escutar o canto do novo Orfeu presente
em toda a música humana
incarnação, crucifixão, jubilação
Se pudermos cantar nós mesmos e tocar um instrumento,
é ainda melhor!

11. Escrever

Escrever
por prazer, por gosto, para ver
escrever para escutar o que o barulho comum encobre ou confunde
incluindo o barulho das palavras
Lavar as palavras até que elas fiquem
completamente puras e redondas e lisas
ou então ir pelos caminhos abundantes
ou então refazer, refazer indefinidamente
para abordar um pouco mais o que falta e insistir
escrever para chegar àquele ponto
que comunica com o que está para além e aquém de toda a palavra.

10. Desejar, desejar desesperadamente

Desejar, desejar desesperadamente
desejar até à dor e à angústia
até ao grande vazio amargo
desejar que seja de outro jeito
desejar o fim das crueldades
das loucuras, da estupidez, do abjecto,
desejar a satisfação, a luz, a ternura
ter muita fome, ter muita sede
do mundo diferente
e de si-mesmo diferente.

9. Abrir a Sagrada Escritura

Abrir a Sagrada Escritura
e aí está!
Não é um livro, não é o Livro,
é o lugar da Palavra que se estende para além das palavras
sonho sem sonho à margem do texto
ressonância através de todas as espessuras da vida
fonte cuja nascente é invisível,
pensamentos, imagens, palavras
movimentos sóbrios do coração
a Letra é necessária
o espírito vai
porque o sentido da Escritura é a vida salva.

8. Conversar disto e daquilo

Conversar disto e daquilo
e de repente
sem Deus ou sem eu o prever
acontece que nos pomos a falar do essencial
da vida, da morte, do futuro da humanidade
do amor, da verdade
talvez de Deus ou talvez não,
da religião cristã, dos grandes caminhos do homem.
Alargamos a conversa a outros, sem ódio,
sem controvérsia, sem baixa paixão, mas porque isso importa mais [que tudo o resto
e porque falamos disso tão poucas vezes
na conversa aquele que em Jesus Cristo
deixa passar algo do Anúncio
não porque se crê obrigado
mas porque ele é como é, ele está nele,
a sua palavra transporta a Palavra
e pode acontecer que alguém escute
pois o fundo do coração está aberto

7. Como uma criança, dizer coisas a Deus

Como uma criança, dizer coisas a Deus
oração, súplica, raiva ou ternura
pesar ou júbilo
isso escapa
nem nos apercebemos disso
senão mais tarde, algumas vezes.
Aquele que assim fala em nós é a criança
sempre na aurora da vida
ingénua como a vontade divina.

6. Dormir

Dormir
e deixar o coração de vigia.

5. Angustiar-se profundamente por não rezar

Angustiar-se profundamente por não rezar
gemer interiormente todo o dia por ser incapaz
da mais pequena invocação
da mais pequena leitura
mesmo do Evangelho
de se sentir frio, seco, ausente
e feliz num outro lugar
sem Deus, sem Cristo, sem tudo isso
e sofrer justamente por isso
e finalmente decidir entregar-se assim a Deus
e esperar, sem qualquer pensamento.

4. Exprimir um pedido do Pai Nosso

Exprimir um pedido do Pai Nosso
só um,
uma só vez.

3. Abrir a Sagrada Escritura

Abrir a Sagrada Escritura
abrir o Livro somente
e partir em devaneio
imaginar o seu próprio livro
contar histórias a si mesmo
remexer nos seus velhos mitos
de crueldade, de triunfo, de sensualidade, de desespero,
de amor, de caridade, com o normal narcisismo dessas coisas
e ler, no texto,
duas palavras.

2. Ler um livro

Ler um livro de pensamento exigente
com um forte desejo da verdade
sem avidez em saber
sem pretensão de disputar
mas por gosto, por amor da verdade
Abrir a porta profunda
a todo o pensamento que emerge
e deixá-lo permanecer em paz
de modo que ele venha a dar o seu fruto.

1. Caminhar

Caminhar ao longo de todo o comprimento
numa igreja românica, bela, bastante grande
Saint Philibert de Tournus, por exemplo,
ou numa igreja gótica,
Chartres, Reims, Bourges
ou barroca, como Wieskirche
e não pensar em nada,
absolutamente nada,
deixar vaguear o olhar
deixar cantar a pedra,
deixar que o lugar fale,
e partir, algum tempo depois e sem nenhuma pressa.


Maurice Bellet
In Cahiers pour croire aujourd'hui, Novembro 1993)
Trad.: MLPV/JTM
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Lugares Teológicos


Viagens com o Messias

Michael Belk já colaborou com a Calvin Klein, e as suas imagens aparecem nas revistas Vogue, GQ e Vanity Fair. Mas ele considera que o seu melhor trabalho até hoje é uma nova colecção de fotografias protagonizadas por Jesus.

As imagens pretendem recontar a história de Cristo para o público do século XXI. Tiradas em Matera, Itália, na mesma região em que foi filmada «A Paixão de Cristo», as fotografias ilustram narrativas bíblicas, tendo como pano de fundo questões contemporâneas, como a pobreza e o materialismo.

No vídeo seguinte, Michael Belk explica as suas motivações (em inglês); são também apresentados excertos das fases de produção.



sábado, 19 de dezembro de 2009

IV Domingo do Advento


«Feliz de ti que acreditaste»

Aproxima-se a festa do Natal.
É tempo de colocar novamente a pergunta: como temos nós preparado este nascimento, ou melhor, este aniversário de nascimento do menino Jesus? Que balanço de fé fazemos deste tempo de preparação espiritual e humana?
A liturgia do I Domingo do Advento centrava-se na esperança de um libertador (“andais com muitas preocupações… orai e vigiai para não serdes surpreendidos”)
O II Domingo revelava o Deus que vem salvar o Homem, centrando-se na mensagem do Baptista (endireitai e preparai os caminho…).
O III Domingo convidava-nos à alegria de uma vida em Deus, não uma alegria de sorriso “Pepsodente”, mas de quem acredita no projecto de Deus (Que devemos nós fazer?).
Neste IV Domingo do Advento, a liturgia apela para um encontro muito especial, onde Maria e Isabel têm um papel preponderante. Convida-nos à fé: «Feliz de ti que acreditaste», dizia Isabel a Maria.
Estamos no domingo derradeiro que antecede a vinda do Messias… Segundo o Evangelho de S. Lucas, Maria, sabendo que Isabel ia dar à luz, “pôs-se a caminho” e “correu ao seu encontro”… As duas mulheres grávidas saúdam-se; porventura, falam da nova etapa das suas vidas: a beleza da maternidade, o dar à luz a vida que trazem no seu ventre, as maravilhas que Deus nelas operou, como reagiriam as outras mulheres da Judeia, a reacção dos seus maridos e da sociedade a esta notícia…

Mas este encontro tem acontecimentos curiosos: à saudação de Maria, o menino de Isabel “saltou-lhe de alegria”. O encontro de duas mães estabelece diálogo e a relação entre os filhos, neste caso João Baptista e Jesus… João será aquele que anunciara a vinda eminente de Jesus, enquanto este, homem e Deus, faz o menino João «saltar de alegria» no útero de sua mãe e dá cumprimento às suas profecias.

Deus não actua sozinho… Maria e Isabel são instrumentos da sua salvação… É um Deus humano, que vem ao encontro do Homem, propor-lhe novos caminhos, surpreendes, cheios de vida, que brotam da geração de novos filhos.

Maria e Isabel poderiam ter recusado o dom da maternidade, ao ponto de abortar… À luz da tradição do seu povo e da lei, Maria arriscou em demasia… José, a princípio, não acreditou como poderia ser isso possível… Fica confuso face a Maria, e perturbado, com os comentários do povo… Mas eis que Deus providenciará os melhores caminhos…

Por isso, a liturgia de hoje é um apelo à maternidade como dom de Deus. Só as grávidas conseguem entender as dores e as alegrias da maternidade (ver o blog onde mulheres grávidas partilham a sua vida, as dúvidas, a alegria…). Maria e Isabel saudaram-se, acolheram-se, partilharam a mesma situação e deram graças a Deus: “bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre”. Não discutem que fraldas vão comprar, que roupa hão-de vestir ao menino, que vitaminas ou vacinas têm que tomar contra a gripe , as infecções… Nascem pobres, frágeis. O Deus-Menino nasce numa manjedoura, numa gruta de Belém, pobre e humilde… Mas mesmo assim, Maria e Isabel rejubilam porque irão dar à luz um filho, cada uma na sua pobreza e fragilidade humanas, que tem em Deus a sua origem. Sabem que eles não exclusivamente seus… Ambos são dom de Deus, como são todos os filhos, com uma missão muito especial… Eles são fruto do amor humano e do amor incondicional de Deus… Homem e Deus unidos geram vida, aceitação e alegria…

Ambas exultam de alegria por serem mães: “o menino exultou de alegria no meu seio”… Não consta que neste tempo houvesse já ecografias detalhadas, mas a presença de Deus nesta mulheres alegres, revelou o resultado de uma felicidade quem está mais em dar do que receber, mesmo sabendo das dores do parto. Afirma Erri de Luca: “É de Maria o nascimento e só depois será do mundo e se tornará um dia santo dentro de um calendário”. Como é de qualquer mãe o nascimento de um filho. As mães sentem o batimento e movimento dos seus filhos. Maria percebe que ele fruto de uma relação diferente. Sabe que Ele vem do acreditar que a “Deus nada é impossível”. Ele é dom porque é fonte de bênçãos para todos… Só assim Maria perceberá mais tarde a resposta de Jesus: “quem tiver feito a vontade do meu pai que está nos céus, esse é meu irmão, irmã, mãe”. E Maria é mãe, porque assumiu o “fiat”, o faça-se a Tua vontade”, com confiança, com dor, alegria e amor.

Como vemos, a vinda do Menino Jesus revela a alegria de duas mães… Hoje é frequente nos casais mais novos os filhos serem por vezes um peso e não fonte de alegria (ou porque já não há tempo para ir ao cinema, passear ao fim-de-semana, ou porque dá muito trabalho…). É tempo de perguntarmos onde está a nossa felicidade e como a construímos? O sociólogo, Moisés Espírito Santo, no Jornal de Notícias de ontem, dizia que o “eu”, a “felicidade individual” substituiu Deus, o mesmo significa dizer, estamos escravos da materialidade, vivemos em função de uma felicidade virtual, televisiva, que ilude a nossa própria forma de ser e de existir. Uma felicidade que não passa somente pelo encontro virtual dos telemóveis, das redes sociais da Internet, mas pelo tocar, pelo sentir da presença do outro diante de mim.

Será que acontece o mesmo connosco, cristãos, que celebramos a festa da vida no Natal? Como educar as crianças e jovens para a importância do encontro familiar, da simplicidade e da fraternidade se, por vezes, a única preocupação que temos é a de dar a melhor prenda, e, às vezes, até com alguma consternação (é pá, já é Natal, e ainda não comprei nada para o meu afilhado?) Não seria mais importante simplesmente a presença alegre e encontrarmo-nos uns com os outros, fazendo das prendas apenas um gesto simbólico e simples do amor? O amor simples é o mais complicado porque exige genuidade e não artificialidade. Será que, como cristãos, estamos também imbuídos neste espírito de Natal exclusivamente comercial? Se sim… isso é um grande contra-testemunho da nossa própria essência… E como existir se estamos em permanece contradição com aquilo em que acreditamos? A carta aos Hebreus dizia: “ao entrar no mundo, Cristo disse: não quiseste sacrifícios nem oblações, mas formastes-me um corpo”. Por vezes, a vida revela-se um enorme sacrifício, pesado, porque não brota da sinceridade do nosso coração.

Se acreditamos num Deus feito carne, presente em Jesus Cristo, onde está a nossa felicidade? Em alcançar grandes níveis de vida à custa do sofrimento de terceiros? Maria e Isabel escolheram uma felicidade simples, atraente e partilhada: acolher a maternidade, gerar vida nova, acreditando num Deus libertador, salvador, alegre e próximo da humanidade. Por tudo isso, Maria é bendita entre mulheres porque teve a coragem de carregar no seu ventre um menino que hoje se faz presente na nossa vida… E porque Maria teve a fé suficiente para dar graças a Deus por tudo quanto lhe aconteceu: “a minha alma glorifica o Senhor e o meu Espírito se alegra em Deus meu Salvador”. Como diz um pensador: “As orações não mudam Deus. Mudam quem reza” (Soren Kikegaarden). É nessa linha que se encontra Maria.

À luz da Palavra, continuemos a exercer a caridade e o amor, recolhendo e distribuindo pelas Instituições que ajudam os mais desfavorecidos, ou pelas pessoas que conhecemos e necessitam da nossa fraternidade… Maria, sabendo da situação de Isabel, pôs-se a caminho e saudou-a. Coloquemo-nos a caminho e façamos uma visita fraterna aos homens e mulheres que gritam por amor e esperança.
Acreditemos que Ele, o Deus-menino, «será a Paz», segundo a fé do profeta Miqueias, para todas as nações.

João Paulo Costa

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Pensamento...


Para ser grande, sê inteiro

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive

Ricardo Reis

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Peça de Teatro




Breve Resumo da História de Deus



D. Manuel Clemente



"Um breve sumário da história de Deus levado à cena no Teatro Nacional São João do Porto, quase a findar 2009… Um momento também, para nos surpreendermos com o enunciado. De facto, é muito desproporcional. Da palavra imensa que é “Deus”, com tudo o que evoca e ainda mais o que adivinha, à limitação de semanas, em espaço definido. Espaço cenograficamente “concentrado” e em penumbra na maior parte do tempo breve, até irromper o tempo todo, abrindo‑se a luz e finalmente a porta.


Valha‑nos o facto do espaço nos integrar a nós, actores ou espectadores, com a natureza de novo imensa de cada um. Encontramos então o arco em que tudo acontece, de imenso a imenso, através das mediações do espaço e do tempo. Aqui, agora, num teatro do Porto. Quase só o génio de Gil Vicente nos podia situar assim, tão desmedidamente afinal.


Conhecemo‑lo: de auto em auto, lá desfilam todos e a tratar de tudo. Figuras celestes, as mais sublimes, e retratos terrestres, os mais comezinhos, dignos ou risíveis. Trechos de ritual, até nalgum latim da escrita, e apontamentos do linguajar corrente, como se não estranhava ainda nos serões da corte. Já com razões modernas, de cristianismo reformista, em que Mestre Gil se dizia e comprometia; e conservando ainda a integralidade medieval de culto e cultura, em que tópicos bíblicos e lugares da altura se encontravam bem numa ambiência só, misturando figuras dos dois Testamentos com gente contemporânea do autor e acontecimentos de “actualidade”. Mas a história era “de Deus” e brevemente sumariada. Como se fosse possível e como Gil Vicente acreditava ser. – Donde a ousadia? Vivo hoje, responderia apenas: – Creio assim!


O seu cristianismo traz a religião para a história humana, como acontece. Não parte da eternidade para a história, reconhece na história o sinal que a alarga. E, precisamente, no que
haja de mais circunstancial e episódico, também mais autêntico. É por isso que nos faz rir ou chorar e nunca nos deixa indiferentes, meio milénio depois. É de nós que Gil Vicente trata, como se nos conhecesse já. Ou melhor, porque já nos conhecia, naquilo que transportava em si da humanidade comum. Por isso é um humanista de primeira e é primeiramente um humanista, situando‑se naquela verdade que no sumário de cada ser humano se distende infindamente, como em Deus.


Deus faz‑se história porque encarna, sabia‑o Gil Vicente. E faz‑se breve, sumaria‑se, porque, vivendo inteiramente cada momento, aí mesmo realiza a sua integralidade. Sua e nossa, porque de relação se trata: criação, queda e recriação, de Adão a Cristo, tudo se re(con)duz, quando Adão somos nós.


O resto da história também nos pode sumariar brevemente. Mas só quem o sabe o vive e só quem o vive o sabe e pode dizer escorreitamente, como Gil Vicente aqui. Como Nuno Carinhas e os seus colaboradores e actores o retomam espectacularmente agora, sumariando‑se também. Num trabalho de profunda e só assim belíssima coincidência com a escrita e a alma do mestre dos autos de el‑rei.


Tudo fica breve, porque mais seria excesso. Tudo fica dito, porque basta para entrever. Da
história de Deus, abrindo eternidade no tempo, só se pode falar como entrevisão. E assim é arte. Espantosa ocasião de nos espantarmos de nós. Entre figuras e sentenças, Gil Vicente reencontrou‑nos. Na mesma história afinal.
Por alguns dias, num teatro do Porto, o breve
sumário de tudo…" •






Em exibição até 20 de Dezembro no Teatro Nacional S. João...

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Advento...

Para ajudar a viver o Advento, deixo aqui um texto de Erri de Luca, autor do livro "Azeitona com Caroço..."

Advento
Rezar com Maria em tempo de Advento

O que te peço, Senhor, é a graça de ser.
Não te peço mapas, peço-te caminhos.
O gosto dos caminhos recomeçados,
com suas surpresas, suas mudanças, sua beleza.
Não te peço coisas para segurar,
mas que as minhas mãos vazias
se entusiasmem na construção da vida.
Não te peço que pares o tempo na minha imagem predilecta,
mas que ensines meus olhos a encarar cada tempo
como uma nova oportunidade.
Afasta de mim as palavras
que servem apenas para evocar cansaços, desânimos, distâncias.
Que eu não pense saber já tudo acerca mim e dos outros.
Mesmo quando eu não posso ou quando não tenho,
sei que posso ser, ser simplesmente.
É isso que te peço, Senhor:
a graça de ser de nova.

Chegou sem ser esperado, veio sem ter sido concebido. Só a mãe sabia que era filho de um anúncio do sémen que existe na voz de um anjo. Tinha acontecido a outras mulheres hebreias, a Sara por exemplo.

Só as mulheres, as mães, sabem o que é o verbo esperar. O género masculino não tem constância nem corpo para hospedar esperas. Sinto de novo a agravante de ignorar fisicamente a voz do verbo esperar. Não por impaciência, mas por falta de capacidade: nem mesmo durante as febres de malária me acontecia recorrer ao repertório das fantasias de me curar, de estar à espera de.

Nos despertares matutinos ao folhear Isaías leio: «Felizes aqueles que o esperam» (Is 30,18). Não conheci esta sábia e física alegria. Mas mais forte do que esta notícia, no mesmo versículo está escrito «Por isso esperará Iod/Deus para vos fazer misericórdia». Existe uma primeira espera, que espera por Deus e tem o mesmo verbo hebraico hacchè. Na sua redução à forma da espécie humana, o Seu tempo infinito contrai-se no finito de uma espera. Deus espera: «para vos fazer misericórdia».

O tempo de Advento vive desta imitação, defronte à eternidade de um Deus que aceita fazer-se tempo, irrompendo no mundo em meses estabelecidos com nascimento, morte e ressurreição.
Quem tem no seu corpo os recursos para conceber esperas, conhece do versículo de Isaías a imensidade da correspondente espera de Deus.

Erri De Luca

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Caroço de Azeitona


Deixo aqui como proposta de leitura o livro Caroço de Azeitona de Erri de Luca... É um livro pequeno mas de grande densidade e profundidade... Partilho uma possível abordagem e a entrevista do autor...


Caroço de azeitona

Entre nós, chama-se Antigo Testamento a uma recolha de escrituras sagradas do povo hebreu. Na sua língua de origem aparece sob o título de Mikrà / leitura. Porque é esse o seu valor de uso, o de ser lida em alta voz na assembleia dos ritos, nos sábados, nas festas. E mesmo quando alguém a lê por conta própria, nos tempos livres, separado dos outros, a regra impõe que mova os lábios, que não leia só com os olhos. O corpo deve participar, respiração e lábios pelo menos, acompanham a viagem das palavras antigas, fazendo-se portadores destas.

O acontecer destas escrituras é a revelação: um Deus, único e solitário, fez o mundo por meio da sua voz primeiro, da luz em seguida. Extraiu-o do nada, cuidando, com a mesma atenção, do imenso infinito e da partícula.

Uma boa parte da humanidade não tem consciência de ter saído de Deus. Muito aflige o acto de confiança, antes do acto de fé. Permaneço, como não crente, alguém que passa pelas escrituras sagradas e não um residente. Desloco-me ao longo das linhas paralelas de um outro alfabeto, fechado entre vinte e duas letras dispostas entre o alef e o tau, que se lêem em direcção contrária à nossa, em páginas que se desfolham ao contrário. Passo sobre esta língua com o dedo e com as pestanas e dou-me conta do choque, do impacto que sofreu. Uma vontade de se revelar e agir dentro do mundo precipitou-se sobre uma língua de palavras descarnadas, hostil a todo o conceito abstracto. Precipita sobre vocábulos de três sílabas com o acento colocado sobre a última, e transmite-lhes a tarantela febril da sua incandescência. Os verbos, pela urgência, comandam a frase, abrindo-a antes do sujeito, antecipando-o, mesmo quando se trata de Deus. Todas as vezes que se lê na tradução: «E Deus disse», esteja-se certo que em hebraico é: «E disse Deus». Porque nesta vontade de revelação o dizer é mais importante e urgente do que o próprio facto de ser Deus a falar.

Toda a criação, e o fazer seguinte, e todo o fazer segundo, que é o dos homens, escrevem-se dando precedência à obra do verbo. «Escuta Israel», recita, lendo o livro entre nós chamado de Deuteronómio e pelos hebreus Devarìm / palavras, a principal oração hebraica. Escutar é a primeira urgência, o primeiro pedido.

Ler as escrituras sagradas é obedecer a uma precedência do escutar. Começo as minhas manhãs com um punhado de versículos, para que o meu dia tenha um fio condutor. Posso depois dispersar-me durante o resto das horas correndo atrás do que tenho para fazer. No entanto mantive para mim um penhor de palavras duras, um caroço de azeitona para andar a girar na boca.

Errio de Luca

De uma entrevista ao Público (Ípsilon) por António Morujo:

É verdade que começa o dia lendo versículos da Bíblia “para que o dia tenha um fio condutor”?
Acordo todos os dias estudando o hebraico antigo. Não sou crente. Tenho necessidade disso para despertar, como algo que acompanha o café, para forçar a caixa fechada do meu crânio.

Porquê esse fascínio pelo texto bíblico?
Porque aquele é o formato original do qual descende toda a nossa civilização religiosa. Para mim aquele é um texto obrigatório. E aproveito de maneira escandalosa do facto de só eu o conhecer. E de poder desmascarar todas as traduções péssimas, ruins e mal intencionadas. Aproveito o talento que tenho, mas o texto deveria ser conhecido por todos.

É nesse sentido que fala da Bíblia como um caroço de azeitona?
Sim. As palavras que lia de manhã, quando trabalhava como operário, tinha-as como companhia para todo o resto do dia. Remastigava-as no trabalho das obras e fazia como se fosse um caroço de azeitona que me ficava na boca.

Já traduziu vários livros da Bíblia, escreveu “Em Nome da Mãe”, uma das mais belas narrativas ficcionadas do nascimento de Jesus. Há um livro ou uma personagem da Bíblia de que goste mais?
José. Nenhum dos evangelhos diz que era velho, podemos imaginá-lo jovem, belo e enamorado.
O seu nome vem do verbo hebraico yasaf, que quer dizer acrescentar. Yosef, à letra, é aquele que acrescenta. E o que acrescenta ele? Para já, a sua fé. Ele acredita na versão da sua noiva, grávida mas não dele. Acrescenta a sua fé à fé da rapariga que tinha acolhido aquela notícia.
Acrescenta-se ainda como esposo daquela rapariga, impedindo assim a condenação à morte, porque ela, perante a lei, era adúltera. E acrescenta-se enquanto segundo pai daquela estranha criatura aparecida no meio deles, Jesus, Yeshu em hebraico. Ele contribui e muito para esta história. No evangelho não é tido em conta mas nesses nove meses deu um contributo enorme.

Dê um exemplo das más traduções da Bíblia de que falou.
No original hebraico, não está a condenação de Eva de parir com dor. A palavra hebraica é esforço, fadiga. Não é dor, porque ali não há intenção punitiva da divindade. Há apenas uma verificação.
Àqueles dois, que comeram da árvore do conhecimento do bem e do mal e que se encontraram nus, diz: “Vocês tornaram-se outra coisa, não pertencem já a nenhuma espécie animal; nenhuma espécie animal sabe que está nua; aconteceu uma mudança total”.
Está dizendo que a facilidade, a agilidade de parto ou a naturalidade com que os animais têm os filhos não acontecerá mais. E Adão diz logo: “Maldita a terra.” Porquê, se a terra não lhe fez nada? Porque há outra verificação: Adão não se contentará com o fruto espontâneo, mas esforçará a terra, irá afadigá-la também com o seu suor, irá desfrutá-la para tirar o maior lucro. A terra será maldita por causa do esgotamento dos recursos.

Não há, então, um castigo?
Vê-se que não há intenção punitiva, porque logo a seguir a divindade faz vestes de peles para cobrir aqueles dois nus. Este é o gesto mais afectuoso.
A palavra hebraica que aqui é traduzida como dor, aparece outras cinco vezes: quatro nos Provérbios e uma nos Salmos. Cinco vezes em seis é traduzida como esforço e fadiga. Ali, metem na boca da divindade uma condenação. E sobre isto baseou-se toda a subordinação feminina, a culpa de Eva.

Publicou há pouco em Itália um livro com o título “Penúltimas Notícias sobre Jesus”. Que notícias são essas?
São todas tomadas das histórias do Novo Testamento, do evangelho. São penúltimas porque as últimas, as respeitantes ao seu regresso, ao cumprimento da promessa, essas estão em suspenso. O cristianismo vive num intervalo entre o anúncio do fim, feito por Jesus, e o cumprimento deste anúncio. São dois mil anos de intervalo, de tempo suplementar.

E quem é esse Jesus?
É um Jesus em carne e osso, um Jesus ainda vivo, que está um tempo na oficina de carpinteiro do seu pai, até começar a sua missão. Vive num território ocupado militarmente por uma nação hostil, a maior potência militar. E pode dizer “dai a César o que é de César”, porque nada naquela moeda tem poder sobre o mundo. Por isso, é uma figura em carne e osso. Um hebreu daquele tempo.

sábado, 10 de outubro de 2009

Para reflectir...

Ninguém foi ontem, nem vai hoje,
nem irá amanhã para Deus
pelo caminho que eu vou.
Para cada homem reserva
um novo raio de luz o sol...
e um caminho inédito.
Léon Felipe,
poeta [1884-1968]

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Será possível pensar, Deus?



A partir do livro “Diário” de Etty Hillesum, mulher judia, que, em 1943, morreu num dos campos de concentração nazi… Foi na dor, na Cruz do holocausto, que foi descobrindo a presença de Deus na sua vida… Um livro fabuloso, denso e intenso…!


Certamente que alguns, mesmo antes de colocarem a pergunta, já saberão dar a resposta exacta ao título, sobretudo aqueles que já têm muitas certezas formuladas. Mas a pergunta não é de resposta fácil, aliás nem saberemos se tem resposta! Mas o que cada um saberá é que mais do que nunca parece que precisamos d’Ele, ou pelo menos de O pensar como tábua de salvação. Como afirmava Etty, se “Deus não me ajudar mais, nesse caso hei-de eu ajudar a Deus” (Etty Hillesum, Diário, Assírio e Alvim, 245). E quem disse isto sabia do que falava porque experimentou na carne e nos ossos o horror do holocausto.

Caso Freud fosse vivo diria que esta necessidade de explicar o mundo, o humano a partir de Deus, resulta de um subconsciente reprimido; Marx diria que em tempos de crise funciona como «ópio do povo»; Nietzsche afirmaria que definitivamente «Deus morreu» face às convulsões emergentes de terror e desastres, remetendo tudo para a necessidade de se criar o Super-homem, capaz de combater e de não sofrer com nada nem com ninguém; Sartre, face ao terror e uma cultura de dramas, morte e medo, de verdadeiro “esplendor do caos” (E. Lourenço), confirmaria a sua tese de que jamais será possível haver essência e que somos absolutamente “seres para a morte” e que a “vida é um inferno” a céu aberto. O que eles nunca disseram foi como é que seria o Homem sem Deus, mas somente quando está presente… Por isso, lhe deram CRÉDITO, pensando-O!

E o nosso mundo, o actual, o que pensará de Deus? Porquê Deus, se temos a técnica e o bem-estar? Se olhar para as religiões, vistas no seu global, dirá que Deus não habita neste mundo, porque as religiões mais do que anunciar Deus, encarceraram-no no templo, em guerras inúteis de busca da verdade e em fundamentalismos sempre postos a matar em nome de Deus? Se olhar para os líderes mundiais, facilmente conceberá um Deus tirano, corrupto, sem escrúpulos, impiedoso, falacioso e sofístico? Mas já escrevia e sentia Etty, também ela testemunha do horror humano: “estou pronta a testemunhar sob qualquer circunstância e até à morte que esta vida é bela e prenhe de sentido, e que não é culpa de Deus as coisas serem actualmente como são, mas culpa nossa” (Ibidem, 242).

Então como pensar Deus, para O dizer hoje, no meio de tanta pluralidade que se diz detentora da verdade? Primeiro, hoje ainda é possível falar de, com e em Deus, por meio de uma fé pessoal e comunitária. Segundo, que o Deus em que os cristãos acreditam é o de Jesus Cristo, encarnado numa história humana, que no paradoxo do sofrimento, e assumindo a dor humana, revelou a LUZ da ressurreição e da esperança a todos aqueles que viviam e vivem na opressão. Terceiro, tudo aquilo que porventura se possa dizer de Deus terá de brotar de uma experiência pessoal e relacional, onde cada um, crente ou não, poderá dizer que Deus é amor, a partir de referências concretas de humanidade, de AMOR humano, que nos leve a DAR e a TER CRÉDITO de Deus face ao mundo.

Como diz Kafka, na sua Carta ao Pai: “tu não terias de fazer qualquer espécie de acção pedagógica, mas simplesmente levar uma vida quer servisse de exemplo; se o teu judaísmo [cristianismo…] fosse mais enraizado, o teu exemplo seria mais convincente” (F. Kafka, Carta ao Pai, 59). O pessoal e o ritual juntos fazem muita diferença… Não nos deixam nem no puro subjectivismo da fé nem no puro vazio do ritualismo repetitivo e incolor.

Mas como fazer passar a mensagem de Deus? É algo que cada um terá de sentir a necessidade de descobrir, de ir ao encontro do Deus vivo, de celebrar, vivendo, essa fé com os outros. O amor de Deus não se impõe por decreto, ou se vive ou então não é possível fazer uma experiência de fé com Deus, sem a qual todas as iniciativas ficam reduzidas a um sentimentalismo subjectivo, sem substância, que é o de transformar a vida em oração e a oração em vida profunda com os outros.

Ainda no dizer de Etty, um livro que todos poderiam e deveriam ler, “toda a energia e amor e confiança em Deus que uma pessoa possui, e que nos últimos tempos tem aumentado tão miraculosamente dentro de mim, deve estar disponível para qualquer outra pessoa que se cruze connosco e que precise” (Ibidem, 236). A isto chama-se Deus encarnado na história concreta do Homem, pela via do amor, onde o rosto da ALTERIDADE se assume como o lugar da revelação do AMOR de Deus.

João Paulo Costa

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Do pós-humanismo à Humanidade




Há bem pouco tempo foram publicados dois livros de grande importância na análise da sociedade contemporânea. Embora os pontos de partida sejam diferentes, eles interagem na busca de soluções e convergem na identificação das causas de um mal-estar da Humanidade. São eles O mundo sem regras, de Amin Malouf[1], e a encíclica Caritas in veritate [Caridade na verdade], do papa Bento XVI[2].

Nessa tentativa de perceber o que de mais profundo está a emergir na actualidade, Malouf considera que estamos numa fase em que “tudo deve ser inventado de novo – as solidariedades, as legitimidades, as identidades, os valores, as referências” [p. 180]. Não poderíamos estar mais de acordo com esta afirmação. Pois, mais do que falarmos num reencontro ou redescoberta dos tempos perdidos, de reencontrar o sentido, a saída para a crise e as referências para os homens de hoje, teremos que inventar um novo modo de Humanidade, uma nova forma de conceber a presença do ser humano no mundo.

Assim, “fazer do dinheiro o critério de toda a respeitabilidade, a base de todo o poder, de toda a hierarquia, acaba por esfarrapar o tecido social” [O mundo sem regras, p. 182]. Por outras palavras, a busca desenfreada e egoísta do lucro por parte de homens sem sentido de comunidade e sem noções de partilha gerou o caos sócio-económico dos tempos actuais. Aliás, não foram estes senhores, das ditas sociedades do alto conhecimento, que levaram ao colapso uma grande parte das economias e dos sistemas financeiros mundiais? No mesmo sentido pensa Bento XVI, dizendo que “o objectivo exclusivo do lucro, quando mal produzido e sem ter como fim último o bem comum, arrisca-se a destruir a riqueza e a gerar a pobreza” [Caritas in veritate, n.º 21].

Mas, Malouf, ao afirmar que “a nossa escala de valores só pode basear-se hoje no primado da cultura e do ensino. E que o século XXI será salvo pela cultura ou então soçobrará” [p. 186], não estará a reduzir em demasia os valores a uma simplicidade bastante contrastante com a complexidade da realidade(s) e da antropologia humana? Perguntamos nós: que ensino ou cultura? A Ocidental ou a Oriental? Laica ou religiosa? Haverá uma cultura ou ensino de tal modo universal que consiga abarcar toda a realidade(s)? Ao reduzir a salvação do planeta à cultura e à educação não será já uma forma redutora de entender o mundo actual? Se todos tivessem acesso a uma educação plena e a uma cultura de excelência estaríamos por si só salvos? Isso bastaria para que o Homem tivesse encontrado o ponto máximo da sua perfeição?

Certamente que ninguém coloca em causa a importância do ensino e da cultura para o progresso da humanidade na sua dimensão material e espiritual. Mas isto é uma forma laica de conceber o mundo, pois coloca de lado a referência ao fundamento último da Humanidade, a sua dimensão religiosa, não no sentido estrito de uma confessionalidade declarada, mas de uma espiritualidade performativa, intrínseca a cada ser humano. A visão religiosa do mundo e todo o simbolismo que lhe subjaz permitem fazer frutificar uma determinada experiência individual, abrindo-a para o universal, para a humanidade toda. Para Mircea Eliade, os “símbolos despertam a experiência individual e transmutam-na em acto espiritual, em compreensão metafísica” [O profano e o sagrado, p. 218][3].

O apelo à dimensão simbólica da vida parece surgir em força na pós-modernidade, após uma recusa humanamente fatal da modernidade, que procurou eliminar toda a simbologia religiosa – sinal de irracionalidade –, resumindo o humano à técnica. Pelo símbolo acedemos à mais alta espiritualidade e, por sinal, à mais alta racionalidade, na medida em que dualizamos os diversos modos de existir. É o símbolo que nos faz “abrir ao mundo” [Mircea Eliade], a sairmos de nós, para experimentarmos o mistério como presença do transcendente no mundo. É esta crise do simbólico em favor de uma alta racionalidade que temos de ultrapassar. Não no sentido de superação mas de integração destas duas dimensões performativas do pensamento e da acção.

Não é possível parar o desregramento do mundo e alcançar a justiça social se buscamos as soluções somente segundo a medida humana. Precisamos de dar o salto para um tempo pós-humanista de modo a percebermos que a vontade humana está para além de si mesma e que a última decisão não pertence a um só homem mas a todos aqueles que buscam a Verdade, a Justiça e o Amor. Porque “sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer compreender quem seja […] o homem não é capaz de gerir sozinho o próprio progresso, porque não pode por si mesmo fundar um verdadeiro humanismo” [Caritas in veritate, n.º 78].

Uma era pós-humanista é necessária para percebermos que um humanismo sem o Homem e sem Deus não é possível. Antes, seria insuportável! Uma era pós-humanista, isto é, a necessidade de passarmos pelo deserto dos humanismos, torna-se cada vez mais real, para entendermos a beleza de sermos humanos e de gerarmos uma nova Humanidade capaz de partilhar entre si as alegrias deste mundo.

Neste sentido, concordando com Malouf, diremos que “este século, ou será para o homem o século da regressão, ou será o século do sobressalto e de uma salutar metamorfose. Se necessitávamos de uma «situação de urgência» para nos sacudir, para mobilizar o que há de melhor em nós, aqui estamos” [274]. Talvez não baste mobilizar o que há de melhor, mas seja também necessário (re)ver o que há de pior em nós, de modo a evitar que o pseudo-melhor se transforme em catástrofe e em irresponsabilidade social.

João Paulo Costa





[1] Amin MALOUF, O mundo sem regras, Difel, Lisboa 2009.

[2] BENTO XVI, Carta encíclica Caritas in Veritate, Vaticano 2009.

[3] Mircea ELIADE, O Sagrado e o profano – A essência das religiões, Livros do Brasil, Lisboa 2006.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009



Recolecção do Clero - Setembro

Recolecção do Clero


Data: 29 de Setembro de 2009 Local: Auditório Vita


PROGRAMA


9h30: Laudes

10h: Reflexão orientada pelo Pe. Rui Alberto

11h30: Intervalo

12h: Apresentação do livro "Para uma ética partilhada", por Enzo Bianchi

13h: Almoço

14h30: Início do cíclo de cinema sobre o presbítero, com a projecção do filme "Chuva de pedras"