terça-feira, 6 de outubro de 2009

Do pós-humanismo à Humanidade




Há bem pouco tempo foram publicados dois livros de grande importância na análise da sociedade contemporânea. Embora os pontos de partida sejam diferentes, eles interagem na busca de soluções e convergem na identificação das causas de um mal-estar da Humanidade. São eles O mundo sem regras, de Amin Malouf[1], e a encíclica Caritas in veritate [Caridade na verdade], do papa Bento XVI[2].

Nessa tentativa de perceber o que de mais profundo está a emergir na actualidade, Malouf considera que estamos numa fase em que “tudo deve ser inventado de novo – as solidariedades, as legitimidades, as identidades, os valores, as referências” [p. 180]. Não poderíamos estar mais de acordo com esta afirmação. Pois, mais do que falarmos num reencontro ou redescoberta dos tempos perdidos, de reencontrar o sentido, a saída para a crise e as referências para os homens de hoje, teremos que inventar um novo modo de Humanidade, uma nova forma de conceber a presença do ser humano no mundo.

Assim, “fazer do dinheiro o critério de toda a respeitabilidade, a base de todo o poder, de toda a hierarquia, acaba por esfarrapar o tecido social” [O mundo sem regras, p. 182]. Por outras palavras, a busca desenfreada e egoísta do lucro por parte de homens sem sentido de comunidade e sem noções de partilha gerou o caos sócio-económico dos tempos actuais. Aliás, não foram estes senhores, das ditas sociedades do alto conhecimento, que levaram ao colapso uma grande parte das economias e dos sistemas financeiros mundiais? No mesmo sentido pensa Bento XVI, dizendo que “o objectivo exclusivo do lucro, quando mal produzido e sem ter como fim último o bem comum, arrisca-se a destruir a riqueza e a gerar a pobreza” [Caritas in veritate, n.º 21].

Mas, Malouf, ao afirmar que “a nossa escala de valores só pode basear-se hoje no primado da cultura e do ensino. E que o século XXI será salvo pela cultura ou então soçobrará” [p. 186], não estará a reduzir em demasia os valores a uma simplicidade bastante contrastante com a complexidade da realidade(s) e da antropologia humana? Perguntamos nós: que ensino ou cultura? A Ocidental ou a Oriental? Laica ou religiosa? Haverá uma cultura ou ensino de tal modo universal que consiga abarcar toda a realidade(s)? Ao reduzir a salvação do planeta à cultura e à educação não será já uma forma redutora de entender o mundo actual? Se todos tivessem acesso a uma educação plena e a uma cultura de excelência estaríamos por si só salvos? Isso bastaria para que o Homem tivesse encontrado o ponto máximo da sua perfeição?

Certamente que ninguém coloca em causa a importância do ensino e da cultura para o progresso da humanidade na sua dimensão material e espiritual. Mas isto é uma forma laica de conceber o mundo, pois coloca de lado a referência ao fundamento último da Humanidade, a sua dimensão religiosa, não no sentido estrito de uma confessionalidade declarada, mas de uma espiritualidade performativa, intrínseca a cada ser humano. A visão religiosa do mundo e todo o simbolismo que lhe subjaz permitem fazer frutificar uma determinada experiência individual, abrindo-a para o universal, para a humanidade toda. Para Mircea Eliade, os “símbolos despertam a experiência individual e transmutam-na em acto espiritual, em compreensão metafísica” [O profano e o sagrado, p. 218][3].

O apelo à dimensão simbólica da vida parece surgir em força na pós-modernidade, após uma recusa humanamente fatal da modernidade, que procurou eliminar toda a simbologia religiosa – sinal de irracionalidade –, resumindo o humano à técnica. Pelo símbolo acedemos à mais alta espiritualidade e, por sinal, à mais alta racionalidade, na medida em que dualizamos os diversos modos de existir. É o símbolo que nos faz “abrir ao mundo” [Mircea Eliade], a sairmos de nós, para experimentarmos o mistério como presença do transcendente no mundo. É esta crise do simbólico em favor de uma alta racionalidade que temos de ultrapassar. Não no sentido de superação mas de integração destas duas dimensões performativas do pensamento e da acção.

Não é possível parar o desregramento do mundo e alcançar a justiça social se buscamos as soluções somente segundo a medida humana. Precisamos de dar o salto para um tempo pós-humanista de modo a percebermos que a vontade humana está para além de si mesma e que a última decisão não pertence a um só homem mas a todos aqueles que buscam a Verdade, a Justiça e o Amor. Porque “sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer compreender quem seja […] o homem não é capaz de gerir sozinho o próprio progresso, porque não pode por si mesmo fundar um verdadeiro humanismo” [Caritas in veritate, n.º 78].

Uma era pós-humanista é necessária para percebermos que um humanismo sem o Homem e sem Deus não é possível. Antes, seria insuportável! Uma era pós-humanista, isto é, a necessidade de passarmos pelo deserto dos humanismos, torna-se cada vez mais real, para entendermos a beleza de sermos humanos e de gerarmos uma nova Humanidade capaz de partilhar entre si as alegrias deste mundo.

Neste sentido, concordando com Malouf, diremos que “este século, ou será para o homem o século da regressão, ou será o século do sobressalto e de uma salutar metamorfose. Se necessitávamos de uma «situação de urgência» para nos sacudir, para mobilizar o que há de melhor em nós, aqui estamos” [274]. Talvez não baste mobilizar o que há de melhor, mas seja também necessário (re)ver o que há de pior em nós, de modo a evitar que o pseudo-melhor se transforme em catástrofe e em irresponsabilidade social.

João Paulo Costa





[1] Amin MALOUF, O mundo sem regras, Difel, Lisboa 2009.

[2] BENTO XVI, Carta encíclica Caritas in Veritate, Vaticano 2009.

[3] Mircea ELIADE, O Sagrado e o profano – A essência das religiões, Livros do Brasil, Lisboa 2006.

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