17. Trabalhar com as próprias mãos
Trabalhar com as próprias mãos
em tarefas caseiras, na costura,
no seu ofício, na bricolagem
e fechar o rádio e todo o zunzum interior
escutar o que fala sem palavras
enquanto as mãos se ocupam
e ocupam a superfície da alma.
Ou então, conduzir um automóvel
muito distendido, atento, delicado
uma vez que essa ocupação deixa livre
um pensamento sem pensamento
que amadurece algures.
16. Nem as imagens nem o texto
Nem as imagens, nem o texto,
nem o lugar, nem a hora
nem a palavra que brota do coração
nem a repetição aborrecida e atenta
nem mesmo o silêncio
mas simplesmente o real
terrivelmente real e chão, as coisas, a superfície
a conversação sem finalidade
as tarefas, os lazeres,
comer, sonhar, dormir
e o sofrimento intolerável, indizível
de tal modo sofredor que nem sofremos
a espera nua do que deve vir ao mundo
para que a terra seja como o céu.
15. Duvidar, duvidar de Deus intensamente
Duvidar, duvidar de Deus intensamente
o quê, haverá um Deus bom e todo poderoso
com toda esta crueldade na natureza
com a infernal crueldade humana
as crianças morrendo de fome, os explorados,
os nevróticos, os embrutecidos, os alcoólicos, todos os [resíduos humanos?
É bela, a imagem de Deus!
E o que é Deus
senão pobre pequena ideia elaborada
no planeta em que somos
nada, no seio do universo brilhando
para dimensões inimagináveis
Objecções, objecções, agonia de Deus
no coração do homem de fé.
Ele respondeu cem vezes, mas trata-se de ausência
Pobre Deus em agonia
como o Verbo idêntico a Si no jardim das oliveiras
enquanto os seus melhores amigos dormiam…
Não é realmente nada pouco vigiar. Na sua agonia.
14. Sair da igreja
Sair da igreja
deixar a celebração
porque não se aguenta mais
porque não podemos continuar
por causa do excesso de intensidade e de sobranceria
do que é considerado dever aí ser feito
em contraste com o desaire aflitivo do que de facto se passa
deixar sem escândalo, sem contestação, com tristeza
e o desejo resistente que de novo se eleve
como? como?
a luz do grande poema onde se inauguram todas as coisas.
13. Permanecer em paz
Permanecer em paz
que é a harmonia dos poderes
para lá (certamente) do turbilhão
para lá da abstenção serena
para lá do abandono voluntário dos heróis
na harmonia dos poderes
coincidindo com a mais humilde humildade
isto, na mediocridade dos dias
sem altivez, sem saber e algumas vezes sem graça.
12. Ouvir música
Ouvir música
A Missa em Si menor de Bach, por exemplo,
especialmente Incarnatus, Crucifixus, Resurrexit
ou então outra coisa
não necessariamente música religiosa
mas escutar na profundidade
escutar o canto do novo Orfeu presente
em toda a música humana
incarnação, crucifixão, jubilação
Se pudermos cantar nós mesmos e tocar um instrumento,
é ainda melhor!
11. Escrever
Escrever
por prazer, por gosto, para ver
escrever para escutar o que o barulho comum encobre ou confunde
incluindo o barulho das palavras
Lavar as palavras até que elas fiquem
completamente puras e redondas e lisas
ou então ir pelos caminhos abundantes
ou então refazer, refazer indefinidamente
para abordar um pouco mais o que falta e insistir
escrever para chegar àquele ponto
que comunica com o que está para além e aquém de toda a palavra.
10. Desejar, desejar desesperadamente
Desejar, desejar desesperadamente
desejar até à dor e à angústia
até ao grande vazio amargo
desejar que seja de outro jeito
desejar o fim das crueldades
das loucuras, da estupidez, do abjecto,
desejar a satisfação, a luz, a ternura
ter muita fome, ter muita sede
do mundo diferente
e de si-mesmo diferente.
9. Abrir a Sagrada Escritura
Abrir a Sagrada Escritura
e aí está!
Não é um livro, não é o Livro,
é o lugar da Palavra que se estende para além das palavras
sonho sem sonho à margem do texto
ressonância através de todas as espessuras da vida
fonte cuja nascente é invisível,
pensamentos, imagens, palavras
movimentos sóbrios do coração
a Letra é necessária
o espírito vai
porque o sentido da Escritura é a vida salva.
8. Conversar disto e daquilo
Conversar disto e daquilo
e de repente
sem Deus ou sem eu o prever
acontece que nos pomos a falar do essencial
da vida, da morte, do futuro da humanidade
do amor, da verdade
talvez de Deus ou talvez não,
da religião cristã, dos grandes caminhos do homem.
Alargamos a conversa a outros, sem ódio,
sem controvérsia, sem baixa paixão, mas porque isso importa mais [que tudo o resto
e porque falamos disso tão poucas vezes
na conversa aquele que em Jesus Cristo
deixa passar algo do Anúncio
não porque se crê obrigado
mas porque ele é como é, ele está nele,
a sua palavra transporta a Palavra
e pode acontecer que alguém escute
pois o fundo do coração está aberto
7. Como uma criança, dizer coisas a Deus
Como uma criança, dizer coisas a Deus
oração, súplica, raiva ou ternura
pesar ou júbilo
isso escapa
nem nos apercebemos disso
senão mais tarde, algumas vezes.
Aquele que assim fala em nós é a criança
sempre na aurora da vida
ingénua como a vontade divina.
6. Dormir
Dormir
e deixar o coração de vigia.
5. Angustiar-se profundamente por não rezar
Angustiar-se profundamente por não rezar
gemer interiormente todo o dia por ser incapaz
da mais pequena invocação
da mais pequena leitura
mesmo do Evangelho
de se sentir frio, seco, ausente
e feliz num outro lugar
sem Deus, sem Cristo, sem tudo isso
e sofrer justamente por isso
e finalmente decidir entregar-se assim a Deus
e esperar, sem qualquer pensamento.
4. Exprimir um pedido do Pai Nosso
Exprimir um pedido do Pai Nosso
só um,
uma só vez.
3. Abrir a Sagrada Escritura
Abrir a Sagrada Escritura
abrir o Livro somente
e partir em devaneio
imaginar o seu próprio livro
contar histórias a si mesmo
remexer nos seus velhos mitos
de crueldade, de triunfo, de sensualidade, de desespero,
de amor, de caridade, com o normal narcisismo dessas coisas
e ler, no texto,
duas palavras.
2. Ler um livro
Ler um livro de pensamento exigente
com um forte desejo da verdade
sem avidez em saber
sem pretensão de disputar
mas por gosto, por amor da verdade
Abrir a porta profunda
a todo o pensamento que emerge
e deixá-lo permanecer em paz
de modo que ele venha a dar o seu fruto.
1. Caminhar
Caminhar ao longo de todo o comprimento
numa igreja românica, bela, bastante grande
Saint Philibert de Tournus, por exemplo,
ou numa igreja gótica,
Chartres, Reims, Bourges
ou barroca, como Wieskirche
e não pensar em nada,
absolutamente nada,
deixar vaguear o olhar
deixar cantar a pedra,
deixar que o lugar fale,
e partir, algum tempo depois e sem nenhuma pressa.
Maurice Bellet
In Cahiers pour croire aujourd'hui, Novembro 1993)
Trad.: MLPV/JTM
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
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