Deixo aqui como proposta de leitura o livro Caroço de Azeitona de Erri de Luca... É um livro pequeno mas de grande densidade e profundidade... Partilho uma possível abordagem e a entrevista do autor...
Caroço de azeitona
Entre nós, chama-se Antigo Testamento a uma recolha de escrituras sagradas do povo hebreu. Na sua língua de origem aparece sob o título de Mikrà / leitura. Porque é esse o seu valor de uso, o de ser lida em alta voz na assembleia dos ritos, nos sábados, nas festas. E mesmo quando alguém a lê por conta própria, nos tempos livres, separado dos outros, a regra impõe que mova os lábios, que não leia só com os olhos. O corpo deve participar, respiração e lábios pelo menos, acompanham a viagem das palavras antigas, fazendo-se portadores destas.
O acontecer destas escrituras é a revelação: um Deus, único e solitário, fez o mundo por meio da sua voz primeiro, da luz em seguida. Extraiu-o do nada, cuidando, com a mesma atenção, do imenso infinito e da partícula.
Uma boa parte da humanidade não tem consciência de ter saído de Deus. Muito aflige o acto de confiança, antes do acto de fé. Permaneço, como não crente, alguém que passa pelas escrituras sagradas e não um residente. Desloco-me ao longo das linhas paralelas de um outro alfabeto, fechado entre vinte e duas letras dispostas entre o alef e o tau, que se lêem em direcção contrária à nossa, em páginas que se desfolham ao contrário. Passo sobre esta língua com o dedo e com as pestanas e dou-me conta do choque, do impacto que sofreu. Uma vontade de se revelar e agir dentro do mundo precipitou-se sobre uma língua de palavras descarnadas, hostil a todo o conceito abstracto. Precipita sobre vocábulos de três sílabas com o acento colocado sobre a última, e transmite-lhes a tarantela febril da sua incandescência. Os verbos, pela urgência, comandam a frase, abrindo-a antes do sujeito, antecipando-o, mesmo quando se trata de Deus. Todas as vezes que se lê na tradução: «E Deus disse», esteja-se certo que em hebraico é: «E disse Deus». Porque nesta vontade de revelação o dizer é mais importante e urgente do que o próprio facto de ser Deus a falar.
Toda a criação, e o fazer seguinte, e todo o fazer segundo, que é o dos homens, escrevem-se dando precedência à obra do verbo. «Escuta Israel», recita, lendo o livro entre nós chamado de Deuteronómio e pelos hebreus Devarìm / palavras, a principal oração hebraica. Escutar é a primeira urgência, o primeiro pedido.
Ler as escrituras sagradas é obedecer a uma precedência do escutar. Começo as minhas manhãs com um punhado de versículos, para que o meu dia tenha um fio condutor. Posso depois dispersar-me durante o resto das horas correndo atrás do que tenho para fazer. No entanto mantive para mim um penhor de palavras duras, um caroço de azeitona para andar a girar na boca.
Caroço de azeitona
Entre nós, chama-se Antigo Testamento a uma recolha de escrituras sagradas do povo hebreu. Na sua língua de origem aparece sob o título de Mikrà / leitura. Porque é esse o seu valor de uso, o de ser lida em alta voz na assembleia dos ritos, nos sábados, nas festas. E mesmo quando alguém a lê por conta própria, nos tempos livres, separado dos outros, a regra impõe que mova os lábios, que não leia só com os olhos. O corpo deve participar, respiração e lábios pelo menos, acompanham a viagem das palavras antigas, fazendo-se portadores destas.
O acontecer destas escrituras é a revelação: um Deus, único e solitário, fez o mundo por meio da sua voz primeiro, da luz em seguida. Extraiu-o do nada, cuidando, com a mesma atenção, do imenso infinito e da partícula.
Uma boa parte da humanidade não tem consciência de ter saído de Deus. Muito aflige o acto de confiança, antes do acto de fé. Permaneço, como não crente, alguém que passa pelas escrituras sagradas e não um residente. Desloco-me ao longo das linhas paralelas de um outro alfabeto, fechado entre vinte e duas letras dispostas entre o alef e o tau, que se lêem em direcção contrária à nossa, em páginas que se desfolham ao contrário. Passo sobre esta língua com o dedo e com as pestanas e dou-me conta do choque, do impacto que sofreu. Uma vontade de se revelar e agir dentro do mundo precipitou-se sobre uma língua de palavras descarnadas, hostil a todo o conceito abstracto. Precipita sobre vocábulos de três sílabas com o acento colocado sobre a última, e transmite-lhes a tarantela febril da sua incandescência. Os verbos, pela urgência, comandam a frase, abrindo-a antes do sujeito, antecipando-o, mesmo quando se trata de Deus. Todas as vezes que se lê na tradução: «E Deus disse», esteja-se certo que em hebraico é: «E disse Deus». Porque nesta vontade de revelação o dizer é mais importante e urgente do que o próprio facto de ser Deus a falar.
Toda a criação, e o fazer seguinte, e todo o fazer segundo, que é o dos homens, escrevem-se dando precedência à obra do verbo. «Escuta Israel», recita, lendo o livro entre nós chamado de Deuteronómio e pelos hebreus Devarìm / palavras, a principal oração hebraica. Escutar é a primeira urgência, o primeiro pedido.
Ler as escrituras sagradas é obedecer a uma precedência do escutar. Começo as minhas manhãs com um punhado de versículos, para que o meu dia tenha um fio condutor. Posso depois dispersar-me durante o resto das horas correndo atrás do que tenho para fazer. No entanto mantive para mim um penhor de palavras duras, um caroço de azeitona para andar a girar na boca.
Errio de Luca
De uma entrevista ao Público (Ípsilon) por António Morujo:
É verdade que começa o dia lendo versículos da Bíblia “para que o dia tenha um fio condutor”?
Acordo todos os dias estudando o hebraico antigo. Não sou crente. Tenho necessidade disso para despertar, como algo que acompanha o café, para forçar a caixa fechada do meu crânio.
Porquê esse fascínio pelo texto bíblico?
Porque aquele é o formato original do qual descende toda a nossa civilização religiosa. Para mim aquele é um texto obrigatório. E aproveito de maneira escandalosa do facto de só eu o conhecer. E de poder desmascarar todas as traduções péssimas, ruins e mal intencionadas. Aproveito o talento que tenho, mas o texto deveria ser conhecido por todos.
É nesse sentido que fala da Bíblia como um caroço de azeitona?
Sim. As palavras que lia de manhã, quando trabalhava como operário, tinha-as como companhia para todo o resto do dia. Remastigava-as no trabalho das obras e fazia como se fosse um caroço de azeitona que me ficava na boca.
Já traduziu vários livros da Bíblia, escreveu “Em Nome da Mãe”, uma das mais belas narrativas ficcionadas do nascimento de Jesus. Há um livro ou uma personagem da Bíblia de que goste mais?
José. Nenhum dos evangelhos diz que era velho, podemos imaginá-lo jovem, belo e enamorado.
O seu nome vem do verbo hebraico yasaf, que quer dizer acrescentar. Yosef, à letra, é aquele que acrescenta. E o que acrescenta ele? Para já, a sua fé. Ele acredita na versão da sua noiva, grávida mas não dele. Acrescenta a sua fé à fé da rapariga que tinha acolhido aquela notícia.
Acrescenta-se ainda como esposo daquela rapariga, impedindo assim a condenação à morte, porque ela, perante a lei, era adúltera. E acrescenta-se enquanto segundo pai daquela estranha criatura aparecida no meio deles, Jesus, Yeshu em hebraico. Ele contribui e muito para esta história. No evangelho não é tido em conta mas nesses nove meses deu um contributo enorme.
Dê um exemplo das más traduções da Bíblia de que falou.
No original hebraico, não está a condenação de Eva de parir com dor. A palavra hebraica é esforço, fadiga. Não é dor, porque ali não há intenção punitiva da divindade. Há apenas uma verificação.
Àqueles dois, que comeram da árvore do conhecimento do bem e do mal e que se encontraram nus, diz: “Vocês tornaram-se outra coisa, não pertencem já a nenhuma espécie animal; nenhuma espécie animal sabe que está nua; aconteceu uma mudança total”.
Está dizendo que a facilidade, a agilidade de parto ou a naturalidade com que os animais têm os filhos não acontecerá mais. E Adão diz logo: “Maldita a terra.” Porquê, se a terra não lhe fez nada? Porque há outra verificação: Adão não se contentará com o fruto espontâneo, mas esforçará a terra, irá afadigá-la também com o seu suor, irá desfrutá-la para tirar o maior lucro. A terra será maldita por causa do esgotamento dos recursos.
Não há, então, um castigo?
Vê-se que não há intenção punitiva, porque logo a seguir a divindade faz vestes de peles para cobrir aqueles dois nus. Este é o gesto mais afectuoso.
A palavra hebraica que aqui é traduzida como dor, aparece outras cinco vezes: quatro nos Provérbios e uma nos Salmos. Cinco vezes em seis é traduzida como esforço e fadiga. Ali, metem na boca da divindade uma condenação. E sobre isto baseou-se toda a subordinação feminina, a culpa de Eva.
Publicou há pouco em Itália um livro com o título “Penúltimas Notícias sobre Jesus”. Que notícias são essas?
São todas tomadas das histórias do Novo Testamento, do evangelho. São penúltimas porque as últimas, as respeitantes ao seu regresso, ao cumprimento da promessa, essas estão em suspenso. O cristianismo vive num intervalo entre o anúncio do fim, feito por Jesus, e o cumprimento deste anúncio. São dois mil anos de intervalo, de tempo suplementar.
E quem é esse Jesus?
É um Jesus em carne e osso, um Jesus ainda vivo, que está um tempo na oficina de carpinteiro do seu pai, até começar a sua missão. Vive num território ocupado militarmente por uma nação hostil, a maior potência militar. E pode dizer “dai a César o que é de César”, porque nada naquela moeda tem poder sobre o mundo. Por isso, é uma figura em carne e osso. Um hebreu daquele tempo.