sábado, 10 de outubro de 2009

Para reflectir...

Ninguém foi ontem, nem vai hoje,
nem irá amanhã para Deus
pelo caminho que eu vou.
Para cada homem reserva
um novo raio de luz o sol...
e um caminho inédito.
Léon Felipe,
poeta [1884-1968]

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Será possível pensar, Deus?



A partir do livro “Diário” de Etty Hillesum, mulher judia, que, em 1943, morreu num dos campos de concentração nazi… Foi na dor, na Cruz do holocausto, que foi descobrindo a presença de Deus na sua vida… Um livro fabuloso, denso e intenso…!


Certamente que alguns, mesmo antes de colocarem a pergunta, já saberão dar a resposta exacta ao título, sobretudo aqueles que já têm muitas certezas formuladas. Mas a pergunta não é de resposta fácil, aliás nem saberemos se tem resposta! Mas o que cada um saberá é que mais do que nunca parece que precisamos d’Ele, ou pelo menos de O pensar como tábua de salvação. Como afirmava Etty, se “Deus não me ajudar mais, nesse caso hei-de eu ajudar a Deus” (Etty Hillesum, Diário, Assírio e Alvim, 245). E quem disse isto sabia do que falava porque experimentou na carne e nos ossos o horror do holocausto.

Caso Freud fosse vivo diria que esta necessidade de explicar o mundo, o humano a partir de Deus, resulta de um subconsciente reprimido; Marx diria que em tempos de crise funciona como «ópio do povo»; Nietzsche afirmaria que definitivamente «Deus morreu» face às convulsões emergentes de terror e desastres, remetendo tudo para a necessidade de se criar o Super-homem, capaz de combater e de não sofrer com nada nem com ninguém; Sartre, face ao terror e uma cultura de dramas, morte e medo, de verdadeiro “esplendor do caos” (E. Lourenço), confirmaria a sua tese de que jamais será possível haver essência e que somos absolutamente “seres para a morte” e que a “vida é um inferno” a céu aberto. O que eles nunca disseram foi como é que seria o Homem sem Deus, mas somente quando está presente… Por isso, lhe deram CRÉDITO, pensando-O!

E o nosso mundo, o actual, o que pensará de Deus? Porquê Deus, se temos a técnica e o bem-estar? Se olhar para as religiões, vistas no seu global, dirá que Deus não habita neste mundo, porque as religiões mais do que anunciar Deus, encarceraram-no no templo, em guerras inúteis de busca da verdade e em fundamentalismos sempre postos a matar em nome de Deus? Se olhar para os líderes mundiais, facilmente conceberá um Deus tirano, corrupto, sem escrúpulos, impiedoso, falacioso e sofístico? Mas já escrevia e sentia Etty, também ela testemunha do horror humano: “estou pronta a testemunhar sob qualquer circunstância e até à morte que esta vida é bela e prenhe de sentido, e que não é culpa de Deus as coisas serem actualmente como são, mas culpa nossa” (Ibidem, 242).

Então como pensar Deus, para O dizer hoje, no meio de tanta pluralidade que se diz detentora da verdade? Primeiro, hoje ainda é possível falar de, com e em Deus, por meio de uma fé pessoal e comunitária. Segundo, que o Deus em que os cristãos acreditam é o de Jesus Cristo, encarnado numa história humana, que no paradoxo do sofrimento, e assumindo a dor humana, revelou a LUZ da ressurreição e da esperança a todos aqueles que viviam e vivem na opressão. Terceiro, tudo aquilo que porventura se possa dizer de Deus terá de brotar de uma experiência pessoal e relacional, onde cada um, crente ou não, poderá dizer que Deus é amor, a partir de referências concretas de humanidade, de AMOR humano, que nos leve a DAR e a TER CRÉDITO de Deus face ao mundo.

Como diz Kafka, na sua Carta ao Pai: “tu não terias de fazer qualquer espécie de acção pedagógica, mas simplesmente levar uma vida quer servisse de exemplo; se o teu judaísmo [cristianismo…] fosse mais enraizado, o teu exemplo seria mais convincente” (F. Kafka, Carta ao Pai, 59). O pessoal e o ritual juntos fazem muita diferença… Não nos deixam nem no puro subjectivismo da fé nem no puro vazio do ritualismo repetitivo e incolor.

Mas como fazer passar a mensagem de Deus? É algo que cada um terá de sentir a necessidade de descobrir, de ir ao encontro do Deus vivo, de celebrar, vivendo, essa fé com os outros. O amor de Deus não se impõe por decreto, ou se vive ou então não é possível fazer uma experiência de fé com Deus, sem a qual todas as iniciativas ficam reduzidas a um sentimentalismo subjectivo, sem substância, que é o de transformar a vida em oração e a oração em vida profunda com os outros.

Ainda no dizer de Etty, um livro que todos poderiam e deveriam ler, “toda a energia e amor e confiança em Deus que uma pessoa possui, e que nos últimos tempos tem aumentado tão miraculosamente dentro de mim, deve estar disponível para qualquer outra pessoa que se cruze connosco e que precise” (Ibidem, 236). A isto chama-se Deus encarnado na história concreta do Homem, pela via do amor, onde o rosto da ALTERIDADE se assume como o lugar da revelação do AMOR de Deus.

João Paulo Costa

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Do pós-humanismo à Humanidade




Há bem pouco tempo foram publicados dois livros de grande importância na análise da sociedade contemporânea. Embora os pontos de partida sejam diferentes, eles interagem na busca de soluções e convergem na identificação das causas de um mal-estar da Humanidade. São eles O mundo sem regras, de Amin Malouf[1], e a encíclica Caritas in veritate [Caridade na verdade], do papa Bento XVI[2].

Nessa tentativa de perceber o que de mais profundo está a emergir na actualidade, Malouf considera que estamos numa fase em que “tudo deve ser inventado de novo – as solidariedades, as legitimidades, as identidades, os valores, as referências” [p. 180]. Não poderíamos estar mais de acordo com esta afirmação. Pois, mais do que falarmos num reencontro ou redescoberta dos tempos perdidos, de reencontrar o sentido, a saída para a crise e as referências para os homens de hoje, teremos que inventar um novo modo de Humanidade, uma nova forma de conceber a presença do ser humano no mundo.

Assim, “fazer do dinheiro o critério de toda a respeitabilidade, a base de todo o poder, de toda a hierarquia, acaba por esfarrapar o tecido social” [O mundo sem regras, p. 182]. Por outras palavras, a busca desenfreada e egoísta do lucro por parte de homens sem sentido de comunidade e sem noções de partilha gerou o caos sócio-económico dos tempos actuais. Aliás, não foram estes senhores, das ditas sociedades do alto conhecimento, que levaram ao colapso uma grande parte das economias e dos sistemas financeiros mundiais? No mesmo sentido pensa Bento XVI, dizendo que “o objectivo exclusivo do lucro, quando mal produzido e sem ter como fim último o bem comum, arrisca-se a destruir a riqueza e a gerar a pobreza” [Caritas in veritate, n.º 21].

Mas, Malouf, ao afirmar que “a nossa escala de valores só pode basear-se hoje no primado da cultura e do ensino. E que o século XXI será salvo pela cultura ou então soçobrará” [p. 186], não estará a reduzir em demasia os valores a uma simplicidade bastante contrastante com a complexidade da realidade(s) e da antropologia humana? Perguntamos nós: que ensino ou cultura? A Ocidental ou a Oriental? Laica ou religiosa? Haverá uma cultura ou ensino de tal modo universal que consiga abarcar toda a realidade(s)? Ao reduzir a salvação do planeta à cultura e à educação não será já uma forma redutora de entender o mundo actual? Se todos tivessem acesso a uma educação plena e a uma cultura de excelência estaríamos por si só salvos? Isso bastaria para que o Homem tivesse encontrado o ponto máximo da sua perfeição?

Certamente que ninguém coloca em causa a importância do ensino e da cultura para o progresso da humanidade na sua dimensão material e espiritual. Mas isto é uma forma laica de conceber o mundo, pois coloca de lado a referência ao fundamento último da Humanidade, a sua dimensão religiosa, não no sentido estrito de uma confessionalidade declarada, mas de uma espiritualidade performativa, intrínseca a cada ser humano. A visão religiosa do mundo e todo o simbolismo que lhe subjaz permitem fazer frutificar uma determinada experiência individual, abrindo-a para o universal, para a humanidade toda. Para Mircea Eliade, os “símbolos despertam a experiência individual e transmutam-na em acto espiritual, em compreensão metafísica” [O profano e o sagrado, p. 218][3].

O apelo à dimensão simbólica da vida parece surgir em força na pós-modernidade, após uma recusa humanamente fatal da modernidade, que procurou eliminar toda a simbologia religiosa – sinal de irracionalidade –, resumindo o humano à técnica. Pelo símbolo acedemos à mais alta espiritualidade e, por sinal, à mais alta racionalidade, na medida em que dualizamos os diversos modos de existir. É o símbolo que nos faz “abrir ao mundo” [Mircea Eliade], a sairmos de nós, para experimentarmos o mistério como presença do transcendente no mundo. É esta crise do simbólico em favor de uma alta racionalidade que temos de ultrapassar. Não no sentido de superação mas de integração destas duas dimensões performativas do pensamento e da acção.

Não é possível parar o desregramento do mundo e alcançar a justiça social se buscamos as soluções somente segundo a medida humana. Precisamos de dar o salto para um tempo pós-humanista de modo a percebermos que a vontade humana está para além de si mesma e que a última decisão não pertence a um só homem mas a todos aqueles que buscam a Verdade, a Justiça e o Amor. Porque “sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer compreender quem seja […] o homem não é capaz de gerir sozinho o próprio progresso, porque não pode por si mesmo fundar um verdadeiro humanismo” [Caritas in veritate, n.º 78].

Uma era pós-humanista é necessária para percebermos que um humanismo sem o Homem e sem Deus não é possível. Antes, seria insuportável! Uma era pós-humanista, isto é, a necessidade de passarmos pelo deserto dos humanismos, torna-se cada vez mais real, para entendermos a beleza de sermos humanos e de gerarmos uma nova Humanidade capaz de partilhar entre si as alegrias deste mundo.

Neste sentido, concordando com Malouf, diremos que “este século, ou será para o homem o século da regressão, ou será o século do sobressalto e de uma salutar metamorfose. Se necessitávamos de uma «situação de urgência» para nos sacudir, para mobilizar o que há de melhor em nós, aqui estamos” [274]. Talvez não baste mobilizar o que há de melhor, mas seja também necessário (re)ver o que há de pior em nós, de modo a evitar que o pseudo-melhor se transforme em catástrofe e em irresponsabilidade social.

João Paulo Costa





[1] Amin MALOUF, O mundo sem regras, Difel, Lisboa 2009.

[2] BENTO XVI, Carta encíclica Caritas in Veritate, Vaticano 2009.

[3] Mircea ELIADE, O Sagrado e o profano – A essência das religiões, Livros do Brasil, Lisboa 2006.