A Eucaristia vista por um invisual
O som desperta a memória para imagens de outros tempos, o cheiro torna-se familiar e o paladar traz recordações que hoje ajudam Manuel Lopes Dias a ver a vida de outra forma.
A vivência da Eucaristia hoje é diferente. Os sentidos estão agora mais despertos e vêem o que os olhos não conseguem mais ver desde que aos 23 anos uma mina na Guerra do Ultramar, em Moçambique lhe tirou a visão. Mas é com profundidade que Manuel Lopes Dias aceita o convite para semanalmente celebrar o memorial do Sangue e Corpo de Cristo.
Numa entrevista à Ecclesia, Manuel Dias, coronel e vice-presidente da Associação dos Deficientes das Forças Armada, confessa que não vai à missa todos os Domingos, mas em cada eucaristia que celebra descobre sempre um aspecto novo.
Manuel Dias não vê e por isso, é através dos sons, dos cheiros e do paladar que celebra vivamente o sacramento da Eucaristia.
“Eu quase que como as palavras que ouço. Como-as e medito nelas”, afirma.
As palavras não são novas mas, afirma, “há sempre um aspecto novo”. Ao sair da Eucaristia, o vice-presidente da ADFA não quer falar, mas opta por “desfrutar” ainda do que teve acesso.
A Eucaristia é, segundo o director de Liturgia do Patriarcado de Lisboa, o Cónego Luís Silva, celebrada por homens concretos, com cinco sentidos, e por isso a corporeidade está presente.
“O cheiro dos incensos, a palavra, a música, a beleza dos paramentos apreciados através da visão, no fundo são os sentidos do ser humano que participam da celebração”.
O homem celebra “um mistério que o transcende, mas esse mistério é celebrado por homens concertos, com cinco sentidos”.
A Eucaristia é celebrada em comunidade. Um grupo de pessoas reunidas que se tornam presentes mesmo para quem não as vê. Manuel Dias sente a comunidade pulsar nos diferentes momentos da eucaristia mesmo quando esta não tem noção dos seus movimentos.
“Quando vou à igreja sinto-me rodeado pela comunidade, sejam crianças, jovens, idoso, homens e mulheres. É uma presença que se sente através do tacto, dos cheiros, pelo andar ou até pelo barulho que as pessoas fazem”, traduz o Coronel.
A comunidade torna-se efectiva quando reza a oração do «Pai-nosso». Esta é a oração comunitária eleita por Manuel Dias.
“Sinto uma vibração enorme quando se reza o «Pai-Nosso»”.
Entrar numa igreja é um convite espiritual que na rotina diária se esconde, mas que não escapa a quem vê de forma única. O cheiro do incenso é para Manuel Dias um convite imediato à espiritualidade.
“O incenso dá-me um ambiente espiritual de elevação, de serenidade, um apelo à interioridade”.
Sem ver o turíbulo a incensar o Evangeliário, o altar ou a assembleia, Manuel Dias imagina o incenso a subir.
Explica o Cónego Luís Silva que a incensação traduz a uma “envolvência”.
“A assembleia, os dons, o pão e o vinho, o altar, o crucifixo e o presidente são incensados, porque todos são divinos”.
O comungar é para Manuel Dias a recordação mais antiga que tem. “O paladar é igual ao de sempre”.
Depois da consagração dos dons por parte do presidente da celebração, Manuel Dias aguarda o partir da hóstia.
“Mesmo se estiver no fundo da igreja, eu ouço o padre a partir a hóstia. Ouço-o porque estou à espera disso para acompanhar a cerimónia”.
Manuel Dias vive a Eucaristia de forma sensitiva. Os seus sentidos aliam-se à razão e mostram um mundo novo, diferente da rotina em que se esconde a fé partilhada. O invisível fica visível perante o olhar de um invisual.
“Uma igreja antiga tem um cheiro diferente, cheira a milhares de pessoas que ali passaram. As pedras sugam as pessoas que ali passaram e sentimos um cheiro diferente”.
O alimento, o sentir a comunidade, o cheiro, a palavra escutada são um convite completo deixado como memorial para ser celebrado por todos os homens.