sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Cristianismo e cultura


Na era da crença descafeinada

Os tempos que correm assemelham-se a um dispositivo de proliferação de crenças, domesticadas por um subjectivismo portátil, crenças indolores, individualistas, transversais, descontínuas, consensuais, inofensivas. Declinam-se regressos, o do sagrado, o dos anjos, o das origens cristãs, mas numa narrativa escorreita, sem sobressaltos, nem fracturas. O religioso enche a montra todo o ano. Fala-se da recuperação da alma, mas não do que se omite na articulação culturalmente correcta desse discurso.

Na feira do Livro de Turim, por exemplo, correndo o ano da graça de 2006, o grande acontecimento editorial era o redescoberto Evangelho gnóstico de Judas, e o fragmento eleito para a divulgação, este: “Levanta os olhos e observa as nuvens, a luz nas nuvens, e as estrelas em redor. A estrela que indica o caminho é a tua estrela”. Quanto mais etérea a mensagem, maior o fascínio.

Recordo o que escreve Slavoj Zizek, em “A subjectividade por vir” (Relógio d’Água, 2006): “Talvez a proibição que recai sobre a adesão apaixonada a uma crença explique por que motivo a «cultura» tende a tornar-se hoje uma categoria central no mundo e nas nossas vidas. A religião é permitida – não como forma substancial de vida, mas como modo de «cultura»”. Zizek aborda a recepção do filme de Mel Gibson, um objecto que não aprecia, mas que lhe serve para pensar “a Paixão na era da crença descafeinada”.

O caminho que ele aí aponta, contrariando o hedonismo espiritualista e evanescente, tão do apetite pós-moderno, é a redescoberta de “um materialismo consequente”.

Numa outra obra, em que enfrenta mais sistematicamente a situação do cristianismo contemporâneo (The fragile absolute or, Why is the Christian legacy worth fighting for?, 2001), tematiza esse “materialismo consequente” tomando a categoria da “desconexão”.

O cristianismo nasceu como uma comunidade de excluídos, na linha dos grupos excêntricos, e a verdadeira desconexão cristã “não é uma atitude de contemplação interior, mas a de um trabalho activo de amor que conduz necessariamente à criação de uma comunidade alternativa”.

José Tolentino Mendonça
24.09.09

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