quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Karl Rahner


Abertura de coração

O homem faz muitas coisas, em si bastante diversas. Não lhe é dado fazer sempre uma só coisa, embora ele tenha no íntimo o desejo, talvez só inconfessado e semiconsciente, de fazer sempre essa única coisa, na qual valha a pena aplicar fadigas, o extremas das forças e o amor do coração. Deve, portanto, fazer muitas coisas. Mas não é de igual valor e dignidade tudo o que faz. Acontece que uma coisa é importante somente por ser inevitável. E o que na verdade é importante e necessário será facilmente evitado e esquecido. O que todos podem fazer, o que ninguém pode deixar de fazer, não é forçosamente o mais elevado.

O homem reza, quando está diante de Deus, com reverência e amor. Não é que possa já realizar o múltiplo na unidade. Isto nunca será possível a um ente finito. Mas, ao menos, está com Ele, o Unificador, fazendo assim o que há de mais importante e necessário, fazendo também o que nem todos fazem. Por pertencer justamente ao mais necessário, o seu acto possui a maior liberdade, produto de uma acção feita unicamente na caridade sempre renovada. Isso, porém, raramente acontece; é bastante difícil para o homem. Deve, portanto, continuamente meditar sobre a essência e o valor da oração, esforço esse sem o qual não logrará orar. Tal reflexão pode, pelo menos, ter como resultado eficiente levá-lo a dizer a Deus: «Senhor, ensinai-me a orar».

Porventura não sabemos todos o que é a oração? Não podemos rezar? Será que não se trata apenas de intimação e admoestação a realizar o que sabemos e podemos? Contudo, não é tão simples e espontâneo. Muitas vezes não sabemos o que é orar e por isso não o fazemos. Existem, de facto, actos humanos, manifestações do coração que todos pensam compreender. Todos pensam conhecê-las; dizem que sabem rezar por ser tão simples. As manifestações mais simples do coração são, todavia, as mais difíceis. Só lentamente o homem as aprende. Se, no fim da vida, o homem o conseguir, a sua vida terá sido boa, preciosa e abençoada. A essas manifestações do coração, às mais simples e ao mesmo tempo mais difíceis, pertencem a bondade, o desinteresse, a caridade, o silêncio, a compreensibilidade, a verdadeira alegria e a oração. Realmente, não é fácil compreender o que é a oração.

Talvez o homem outrora o soubesse, numa época em que o pobre coração ainda não fora gasto pelas mágoas e alegrias da vida, quando ainda, porventura, era capaz de se entregar a um amor puro. Mas depois, aos poucos, tudo mudou, sem o homem perceber. A caridade tornou-se hábito e, quiçá, um egoísmo [vivido] a dois – e esse homem iludiu-se, pensando que ainda rezava. Largou-o, em seguida, desapontado, enfadado, pensando que não valia a pena fazer algo que não tinha já qualquer sentido. Ou ainda: continuava a “rezar”, se é que se pode chamar oração ao que ele fazia. Parece tratar-se de um negócio, no qual tem de pagar ou receber, e assim se comporta – em nome de Deus. Precisa-se do bom Deus, portanto dirige-se-Lhe um pedido. Não quer perder a Sua amizade, eis por que se cumpre um dever. O homem, por assim dizer, faz uma visita de cerimónia (não por muito tempo); o que se há de falar é logo dito. Enfim, Deus há de compreender que ele não tem tempo e deve fazer coisas mais importantes. E essa petição junto do ofício supremo do governo do mundo (tem-se a impressão que é mister insistir muito e que lá tudo funciona com vagar), essa visita oficial ao Soberano do universo, junto ao qual não se quer cair em desgraça, (pois não se pode saber se, no além, depois da morte, o próprio destino correrá perigo) chama-se enfim oração. Ó meu Deus, não é oração, é o cadáver, a ilusão de uma oração.

O que é, na verdade, a oração? É difícil explicar. No final teremos falado muito e mostrado pouco. Em primeiro lugar, seja dito algo de muito simples, algo que está no início de toda a oração e que, em geral não se percebe: na oraçãoabrimos a Deus o nosso coração. Para compreender isso, com o coração e não somente com a razão, devemos considerar duas coisas: os corações podem ser sufocados ou, pelo contrário, os corações podem abrir-se.

Os acontecimentos que se patenteiam na vida exterior, claros ou impenetráveis, são, quando os perscrutamos, muitas vezes apenas sinal e símbolo, uma sombra exterior, reflectindo as coisas que se passam no coração, talvez desde há muito tempo. Agora, sem mesmo que o homem o preveja, mostra-se-lhe de repente a realidade exterior do que estava escondido no íntimo do seu ser. Então, o homem pode, nesse mesmo acontecimento, reconhecer, como num espelho, o estado de seu coração.

Karl Rahner, in Trevas e luz na Oração, Editora Herder, São Paulo, 1961, pp. 9-11

Pastoral da Cultura, Publicado em 10.10.2007

www.snpcultura.org

Sem comentários:

Enviar um comentário