Testemunhar o bom humor de Deus
Se dissermos que Deus é Amor, ninguém se espanta. A afirmação tornou-se até um pouco banal à força da repetição. Mas se dissermos que Deus é Humor, ficamos em estado de alerta, porque nos parece que alguém está a tentar entrar, no território de Deus, “pela entrada dos fundos” e não pela “porta principal”. A verdade é que o Amor não dispensa o Humor.
Que fizemos do Evangelho da Alegria?
O cristianismo não é propriamente conhecido por ser a religião da alegria, e é uma pena. «O cristianismo seria muito mais credível se os cristãos vivessem em alegria», escreveu Nietzsche, e não podemos dizer que sem razão. O nosso testemunho fica muitas vezes refém de umagravitas insonsa, de uma seriedade que facilmente se torna em peso. Esquecemo-nos demasiadas vezes do Evangelho da alegria. Tratamo-la com parcimónia. Nas liturgias, pregações, catequeses, pastorais, a alegria, o humor ou o riso são abordados com muita descrição. A alegria tornou-se uma espécie de tópico marginal, ornamento ou sub-tema.
Por exemplo, quando citamos uma frase bíblica, raramente ela diz respeito à alegria. E, no entanto, a Bíblia é uma espécie de gramática do Humor de Deus. Por incrível que pareça, aquela biblioteca tão séria é também hilariante e está cheia de risos, embora esta dimensão seja, entre nós, escassamente referida e ensinada. Há páginas que constituem um puro alfabeto da Alegria e muitos momentos que só são compreendidos por quem soltar uma gargalhada. É que a Revelação de Deus propaga-se numa dinâmica que é claramente jubilosa.
Talvez tenhamos de levar mais a sério o verso brincado que o Salmo 2 nos segreda: «O que habita nos Céus, sorri». Ou perceber que a expressão crente é chamada a desenvolver-se como uma coreografia festiva, á maneira do que descreve o salmo 33: «Alegrai-vos no Senhor, louvai o Senhor com cítaras e poemas, com a harpa das dez cordas louvai o Senhor; cantai-lhe um cântico novo, tocai e dançai com arte por entre aclamações».
Nessa linha está a maravilhosa imagem do Livro dos Provérbios (8,30-31) que nos apresenta assim a Sabedoria, emanação de Deus, sua presença visível: «A Sabedoria Divina está constantemente a brincar: a brincar na terra e a alegrar-se com os homens», É um enunciado desconcertante, e estamos longe ainda de acolhê-lo, tal o desafio que representa. Não é no conjunto de tarefas tradicionalmente ligadas à sabedoria (julgar, pensar, escrutinar, prever...) que encontramos a Sabedoria de Deus. É infinitamente mais simples o seu programa: brincar, alegrar-se com os homens.
Se passarmos aos Evangelhos os apelos à alegria sucedem-se, e valia muito a pena escutá-los demoradamente. Por exemplo: no começo do Evangelho de São Lucas, aparece uma frase que os anjos dizem aos pastores e que é o arranque da história de Jesus: «Anuncio-vos uma grande alegria que o será para todo o povo (2,10). Mesmo no final do Evangelho, São Lucas tem a preocupação de recordar ao seu leitor que esta promessa se cumpre amplamente, referindo que os discípulos, confiados no mandato de Jesus, «voltaram para Jerusalém com grande alegria» (24,52). A alegria é a caligrafia do Evangelho, e o seu segredo.
Uma promessa de Jesus, transmitida pelo relato de São João, obriga-nos especialmente a parar: «ninguém vos poderá tirar a vossa alegria (16,22). Na nossa experiência a alegria é vivida como sinfonia frágil, música ainda imperfeita, inacabada... Não é que não provemos o límpido e íntimo sabor da alegria, mas apenas em momentos, em lampejos. A verdade é que muitas ameaças avançam sobre a nossa alegria: uma frase, uma notícia, um revés, uma alteração de humor, uma mudança de contexto, uma sombra. Sentimos que a alegria depende de tantas coisas! Como é que Jesus nos diz: «ninguém vos poderá tirar a vossa alegria»? Que alegria é esta, e como podemos aceder a ela?
José Tolentino Mendonça
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